O Serviço Nacional de Saúde, uma das traves-mestras da nossa democracia, enfrentou inúmeros desafios ao longo destes últimos anos. As políticas de Saúde Pública, o investimento em infra-estruturas e recursos técnicos, bem como o nível de exigência incutido pelos profissionais contribuíram decisivamente para atingir um nível de saúde que legitimamente nos orgulha entre os países da OCDE.

Mas será que no Portugal de Hoje o modelo do SNS responde às necessidades da população? Será que se soube actualizar?

A resposta é óbvia: não. Não soube acompanhar a transição epidemiológica e a alteração de estilos de vida, não soube gerir expectativas e, sobretudo, exponenciou as desigualdades no acesso aos cuidados de saúde. É inegável a qualidade do serviço que presta, muito graças ao empenho dos seus resilientes profissionais, mas tornou-se um baluarte da ineficiência à beira do colapso.

Se analisarmos a percentagem do PIB que Portugal disponibiliza para a saúde, fixada em 10,1%, em 2020, e 10,6%, em 2022, ou se observarmos o gasto com saúde per capita, avaliado em 3308 USD per capita, em 2019, e em 4162 USD, em 2022, verificamos que, apesar da percentagem do PIB ser similar à distribuição por sector noutros países, o custo efectivo per capita torna explícita a ineficiência do sistema.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O financiamento “out-of-pocket” imputado a cada um dos portugueses, estimado em 4,7% do total de financiamento para a sua saúde em 2019 e em 5,2% se nos reportarmos a 2021, é ainda mais grave. Comparando esta percentagem com a dos outros países da OCDE, Portugal destaca- se pelas piores razões, sendo apenas ultrapassado por países como China, Chile e Coreia.

Analisando a distribuição regional ou o nível socioeconómico, a desigualdade é evidente: as classes alta e média-alta têm uma taxa de posse de seguros de saúde duas vezes superior à das classes baixa e média-baixa e a percentagem da população que detém seguro de saúde é de 43,5% na Grande Lisboa, muito acima do Interior Norte, com apenas 26,3%.

Temos assistido a várias tentativas de reabilitar o serviço de saúde prestado. Muitas destas medidas não passam de mera paliação, porque, na verdade, uma reestruturação deste sistema carece de uma profunda alteração do modelo de gestão e de financiamento.

O sistema de saúde português terá de ser capaz de se adaptar aos desafios do sec. XXI, dar resposta às necessidades da população, em tempo útil, garantir a segurança na prestação de cuidados e a equidade no acesso a estes serviços, promovendo a inovação e a actualização técnico-científica, sem abdicar da sustentabilidade financeira e de um efectivo planeamento de recursos. Necessitamos de uma alteração à lei de bases da saúde inovadora, sem dogmas ou idealismos obsolescentes.

É necessário um sistema de saúde integrado, público, privado e social, à luz do estado de arte, que garanta elevados padrões de qualidade na prestação de serviços de saúde, um ambicioso nível de saúde da população portuguesa dentro dos próximos 10 anos.

A reconfiguração dos modelos de prestação de cuidados de saúde é essencial, mais descentralizados e capazes de assegurar um serviço de “proximidade”, de forma concertada, com o intuito de promover uma gestão de recursos equitativa e sustentável.  É urgente reorganizar a prestação de serviços de saúde, tendo como fulcro os cuidados de saúde primários e como prioridade a adopção de estilos de vida saudáveis, a prevenção primária e secundária e a diferenciação técnico-científica, sem descurar a reabilitação e a humanização da actividade assistencial, primordial em fases iniciais e terminais do ciclo de vida ou em franjas populacionais específicas, reorganizando as Unidades de Saúde familiar em estruturas integradas com outras entidades externas que possam ter influência na optimização dos cuidados prestados.

Assegurar a sustentabilidade financeira é primordial, através de um modelo de financiamento misto, que englobe uma consignação da contribuição fiscal, mutualização do risco em larga escala, uma efectiva separação prestador-pagador e a definição de um pacote de benefícios, garantindo o carácter universalista do sistema e a protecção dos mais vulneráveis.

Deve-se apostar numa longevidade saudável. Mais importante do que garantir o aumento da esperança média de vida é assegurar que esses anos se vivem com qualidade e dignidade, definindo métricas, implementando metas e avaliando a dinâmica desta franja populacional.

É necessário difundir uma estratégia política de natalidade, em consonância com os desafios sociais e laborais do século XXI, onde a parentalidade não seja encarada como um obstáculo às ambições pessoais e profissionais.

Deve ser promovida uma eficaz literacia em saúde e fomentar o investimento na inovação e diferenciação técnico-científica, através de articulação estreita com Universidades e Centros de Investigação. O incentivo à multidisciplinaridade e à partilha de conhecimento, a definição de objectivos na formação pré e pós- graduada e a criação de condições económicas e fiscais que potenciem o investimento na inovação em saúde devem ser uma prioridade.

O papel primordial que o SNS desempenha para garantir um nível aceitável de saúde da população, as expectativas geradas em torno do estatuto que adquiriu e a dimensão que representa na economia da saúde em Portugal, levam a considerá-lo fundamental na equação de qualquer reestruturação. Admitir que, no presente, o seu contributo para o nível de saúde é semelhante a qualquer outro prestador privado ou social, é desperdiçar uma oportunidade de melhorar exponencialmente a qualidade de prestação de serviços em saúde, além de um erro de estratégia económica e social.

Definir carreiras profissionais aliciantes e estruturadas é urgente, com métodos de avaliação de desempenho pautados por critérios de monitorização da qualidade em saúde, promovendo a consolidação do talento dentro do SNS. O investimento em soft-skills dos profissionais menos diferenciados e a valorização da experiência profissional permitirão humanizar o serviço prestado no SNS e colmatar deficiências previsíveis a curto prazo.

É primordial fomentar uma verdadeira autonomia estratégica, financeira e de gestão, num modelo de governance para o SNS mais descentralizado e menos complexo, que garanta a responsabilização dos gestores, dos profissionais de saúde e dos utentes e que promova uma prestação de cuidados adaptados às necessidades específicas da população em cada região, numa lógica de serviço de “proximidade”.

É urgente uma rede de cuidados no âmbito da saúde mental que vá para além da intervenção clínica. A promoção da saúde mental deve ser vista como um pilar fundamental para uma sociedade que se quer desenvolvida economicamente e socialmente equilibrada.

Tudo isto só será possível com a abnegação de dogmas ideológicos por parte da classe política, com um consenso alargado da sociedade civil, com a contribuição das associações científicas, com a transigência dos interesses corporativos e com a consciência da população de que os recursos são finitos. O mundo mudou, mas infelizmente os nossos decisores políticos parecem não ter percebido!

Receba um alerta sempre que Jorge Carrapita publique um novo artigo.