“Passámos o fim-de-semana a meter a USAID na trituradora. Podia ter ido a umas festas interessantes. Fiz isto, no entanto.”
É com a gabarolice de Elon Musk, com uma piada na sua rede social X, que os historiadores terminarão o relato do que foi a USAID, a agência governamental norte-americana que durante mais de 60 anos prestou ajuda humanitária urgente e teve programas de apoio ao desenvolvimento em mais de uma centena de países, auxiliando milhões de pessoas e salvando milhões de vidas.
A morte iminente da USAID é agravada com os insultos de Musk, que diz que se desmantelou uma “organização criminosa” de “radicais marxistas”.
E com mentiras, como a história falsa e mirabolante de que a USAID teria gasto 50 mil milhões de dólares em preservativos para o Hamas em Gaza. Ou que a USAID esteve por detrás da pandemia da covid-19. Ou que menos de 10% do dinheiro gerido pela USAID chega aos beneficiários no terreno.
E sobretudo com demonstrações de extraordinária ignorância sobre o que é a ajuda internacional, qual era o trabalho da USAID, e quantas vidas dependem da sua acção.
A USAID era responsável por mais de 40% da ajuda humanitária internacional prestada anualmente por todos os países do mundo, em dólares, e por cerca de 20% do apoio ao desenvolvimento. Fazia-o com menos de 1% do orçamento federal norte-americano. Cerca de 40 mil milhões de dólares, praticamente o mesmo valor que Musk juntou para comprar o antigo Twitter e transformá-lo num megafone global de ódio e desinformação. E bem menos do que Musk ganhou com a valorização das suas empresas e investimentos desde a vitória eleitoral de Donald Trump em Novembro.
E fazia muito. Prestava ajuda humanitária a quase três milhões de venezuelanos refugiados na Colômbia, os mesmos que a Administração Trump quer ver longe da fronteira norte-americana (eis um argumento para até um xenófobo perceber a importância da ajuda externa). Geria os gigantescos campos de refugiados no Bangladesh que acolhem mais de um milhão de rohingyas fugidos da vizinha Birmânia. Continuava a alimentar e abrigar milhões que fugiram da Síria. E a desminar campos agrícolas, do Iraque ao Camboja.
Operava o programa PEPFAR de luta contra o VIH e a sida, só esse creditado com mais de 20 milhões de vidas salvas ao longo de duas décadas, sobretudo em África. Combatia a malária e começava a distribuir promissoras vacinas contra a doença. Tentava evitar as próximas pandemias, controlando surtos de ébola no Congo e no Oeste africano. Prestava cuidados de saúde materna e infantil onde estes não existem. (O Governo norte-americano diz que abriu excepções para programas de “vida ou morte”, mas tudo se encontra paralisado e com financiamento congelado, e a quase totalidade dos funcionários da USAID deixa de trabalhar esta sexta-feira.)
A USAID administrava ainda programas de educação, de protecção ambiental, de capacitação de comunidades agrícolas, de saneamento e abastecimento de água, de apoio ao jornalismo independente em regimes autoritários, de promoção dos direitos das mulheres e de minorias perseguidas (coisa proibidíssima agora pela Administração Trump).
Faria melhor o homem mais rico do mundo? Em 2021, Musk criticava as Nações Unidas e dizia que conseguiria acabar com a fome no mundo com apenas seis mil milhões de dólares se alguém lhe apresentasse um plano. Não houve falta de propostas, mas Musk preferiu pegar nesse dinheiro e colocá-lo na sua própria fundação, que há três anos consecutivos viola as leis norte-americanas que obrigam a que doe anualmente pelo menos 5% dos seus activos. Musk não faz sequer o mínimo.
Não faz, nem deixa que outros o façam. O desmantelamento da USAID significa não apenas o fim dos projectos da agência, como também a suspensão do apoio norte-americano, por essa via, a programas-chave das Nações Unidas. Significa o fim de centenas de organizações civis em todo o mundo e o despedimento de milhares de profissionais altamente qualificados, muitos dos quais trocaram carreiras mais seguras por um qualquer espírito de missão.
É uma disrupção global do sector da ajuda humanitária e do apoio ao desenvolvimento, onde europeus e chineses não têm capacidade para colmatar de imediato o vazio criado. Não a tempo de salvar vidas deixadas agora num limbo, com toneladas de alimentos paradas em armazéns e medicamentos por distribuir.
Era tudo perfeito e muito bem-intencionado? Claro que não. A USAID foi criada no contexto da Guerra Fria para ser uma ferramenta de soft power, obedecendo a critérios políticos e geoestratégicos (embora mantendo até há duas semanas uma relativa autonomia que lhe permitia prestar auxílio em contextos onde não tinha o suporte político de Washington). Como também é questionável o facto de a USAID alimentar generosamente um sector de empresas privadas a quem delegava parte da gestão e implementação dos seus programas (mas não da forma obscena alegada por Musk).
Nada disso será resolvido com a sua extinção, mesmo com a prometida manutenção de alguns programas de ajuda externa sob a tutela directa do Departamento de Estado. Pelo contrário. O objectivo publicamente declarado pela Administração Trump é garantir agora que a ajuda internacional se alinha, sem desvios, com o seu programa político, ferozmente hostil a iniciativas anti-discriminatórias e de protecção ambiental ou transição energética.
E o que for feito a partir de agora, sem uma USAID pelo meio, será muito provavelmente gerido e implementado do princípio ao fim pelas mesmas empresas privadas. Ou por outras mais próximas de quem gravita a Casa Branca. Se é que será feita coisa alguma.
O estrago está feito e é provavelmente irreparável. Para reconstruir a USAID tal como operava até há duas semanas, seria necessário um consenso político em Washington que é irrepetível, agora sem a pressão da Guerra Fria e com um Partido Republicano crescentemente radical, populista e isolacionista.
O impacto humanitário é certamente o mais grave nesta história do fim da USAID, e é o que mais interessa aos leitores em Portugal e nos países lusófonos (Moçambique é um importantíssimo beneficiário da ajuda norte-americana). Mas não é o único. Os EUA, que Trump insiste serem “respeitados” desde que está na Casa Branca, prescindem inexplicavelmente de uma ferramenta de soft power muitíssimo eficaz e relativamente barata, abrindo caminho para que, a prazo, países adversários como a China e até mesmo actores não-estatais, como movimentos extremistas ou multinacionais do crime, ocupem o seu lugar no terreno.
A nível interno, o desmantelamento da USAID representa um teste bem-sucedido de uma estratégia inconstitucional (contornando o Congresso e conferindo a Musk uma autoridade inaudita para alguém que não faz legalmente parte do Governo), que será agora replicada noutros sectores do Estado norte-americano: adivinha-se já o fim do Departamento da Educação e da Agência de Protecção do Ambiente (EPA), entre outros alvos.
Musk podia e deveria ter ido a uma qualquer festa no fim-de-semana. O mundo seria muito melhor. E a América, onde os problemas globais acabam sempre por ir bater à porta, também.