O Governo português deve deixar de esperar pela União Europeia e tomar uma posição em relação a Israel – quer seja com uma nota de repúdio, reduzindo o staff na embaixada israelita em Lisboa ou reconhecendo formalmente o Estado da Palestina, sugere à CNN Portugal o especialista em Relações Internacionais Tiago André Lopes. Caso contrário, diz, Portugal corre o risco de passar a mensagem de que “as janelas da nossa embaixada em Kiev valem mais do que a vida do nosso embaixador que estava em Jenin”.
Tiago André Lopes refere-se a um ataque russo com mísseis que, em dezembro do ano passado, atingiu a embaixada portuguesa em Kiev, e do qual resultaram danos ligeiros no edifício, como vidros partidos e portas empenadas. O especialista lembra a reação imediata do Ministério dos Negócios Estrangeiros na altura – “em menos de um minuto”, sublinha – para a comparar com a reação do Governo ao ataque desta quarta-feira das Forças da Defesa de Israel (IDF) contra uma delegação diplomática, composta por representantes de vários países, entre eles o chefe de representação de Portugal em Ramallah, Frederico Nascimento.
Frederico Nascimento foi outrora “o número dois” do embaixador Jorge Torres Pereira, ex-representante de Portugal em Ramallah e Telavive. “Foi meu direto colaborador quando eu estava em Paris e eu até o entusiasmei quando ele foi colocado em Ramallah, uma vez que tinha sido o meu posto anterior”, recorda o embaixador, em declarações à CNN Portugal.
Os diplomatas faziam uma visita em Jenin, na Cisjordânia ocupada, organizada pela Autoridade Palestiniana e coordenada com o exército israelita, tendo-lhes sido autorizada uma determinada rota, dado que se trata de uma zona de combate ativa. O grupo estava junto à entrada do campo de refugiados de Jenin quando ouviu tiros.
“O simples facto de abrir fogo contra diplomatas é significativo”
Segundo o embaixador Jorge Torres Pereira, que falou entretanto com Frederico Nascimento, o representante ter-lhe-à dito que a comitiva ouviu os tiros “no momento em que estavam a entrar para os carros”, que estavam devidamente caracterizados. “Não se pode dizer que foram alvejados diretamente, mas o simples facto de abrir fogo contra diplomatas é significativo e é numa linha de incidentes com jornalistas, incidentes com pessoal das Nações Unidas”, observa Jorge Torres Pereira.
Mais tarde, as IDF emitiram um comunicado no qual alegam que a comitiva – que, além do representante português, incluía representantes de países da União Europeia como França, Espanha ou Itália, mas também de Reino Unido, Rússia, Turquia, China, Canadá, México, Índia, Japão, Sri Lanka, Egito, Jordânia e Marrocos – “desviou-se da rota aprovada e entrou numa área para a qual não estava autorizada”. Confirmaram também que os soldados israelitas que ali operam “dispararam tiros de aviso para os distanciar”. Não há registo de feridos nem de danos.
Para Tiago André Lopes, este esclarecimento “não cola”. “Esteve em causa a vida de um embaixador português, que estava numa missão acreditada, com carros caracterizados, com bandeiras. As imagens são muito claras (pode vê-las acima) – é um comboio diplomático, que desvia umas ruas, é verdade, do percurso combinado, mas isso não é a razão para atacar o comboio”, argumenta.
Este incidente mostra que “não há setores verdadeiramente imunes ou protegidos na atual situação em Gaza”, afirma o embaixador Jorge Torres Pereira. “O que nós estamos a perceber deste ataque é que a população da Cisjordânia, quando lhes são dadas indicações, como se fossem peões – para não dizer coisas piores – corre o risco de ser atacada à queima-roupa”, complementa Tiago André Lopes.
Governo português deve ponderar “a única coisa que diplomaticamente magoa” Israel
Face a este episódio, o Ministério dos Negócios Estrangeiros emitiu uma nota às redações na qual “condena liminarmente o ataque” e convocou o embaixador israelita em Portugal, Oren Rosenblat. Os governos de Itália e de França fizeram o mesmo com os respectivos embaixadores. “Isto não serve para nada”, critica Tiago André Lopes, que entende que “este expediente é uma forma lamentável de o Estado português tentar atrasar aquilo que ele devia fazer, que é uma nota de repúdio a condenar efetivamente o que aconteceu”. Essa nota de repúdio – que, para Tiago André Lopes, já vem tarde, tendo em conta a evolução do conflito na Faixa de Gaza – deve ter uma linguagem que “não pode ser dúbia, não pode ser desculpatória, não pode ser uma coisa de ‘pronto, aconteceu, não vai acontecer outra vez, porque já recebemos garantias de que não vai acontecer outra vez’.”
“Isso agora já não chega”, vinca o especialista em Relações Interiores. “Tem de ser uma nota a dizer: ‘O que aconteceu é grave e, pelo que aconteceu, o Estado português reserva-se ao direito de medidas posteriores.”
Essas medidas posteriores até podem nem acontecer, ressalva Tiago André Lopes, que dá como exemplo a redução do staff na embaixada de Israel em Portugal e “começar a ponderar – porque isso parece-me que é a única coisa que diplomaticamente magoa – o reconhecimento do Estado da Palestina”.
Uma opinião partilhada pelo embaixador Jorge Torres Pereira, que considera que, mais do que uma questão humanitária, o que se passa em Gaza “é um problema político” e que, por isso, deve ter uma resposta política: “Eu penso que não se pode adiar por muito mais tempo o reconhecimento do Estado palestiniano por parte do Governo português.”
“Claro que o reconhecimento do Estado da Palestina é um gesto essencialmente simbólico”, admite o embaixador. “Mas, neste momento, é um gesto simbólico politicamente muito importante. Não me parece que haja nada de mais simbólico, nada de mais importante, do que dar um sinal de esperança à população palestiniana de que as suas aspirações políticas a um Estado não foram esquecidas.”
“Estamos a perder diplomaticamente a guerra da Ucrânia no Médio Oriente”
Tiago André Lopes entende que “é, no mínimo, estranho” se Portugal não fizer nada disto e mantiver uma postura “passiva” face à situação em Gaza, resguardando-se na posição da UE. “O Governo não pode continuar a esconder-se atrás da União Europeia, porque a União Europeia não vai reagir. A Alemanha, a Hungria e a República Checa vão bloquear – como têm bloqueado, de resto, tudo o que tem acontecido ao nível da ONU – uma decisão conjunta” para condenar efetivamente o Estado israelita pela situação humanitária em Gaza, antevê o especialista.
Este incidente em Jenin surge na semana em que a Comissão Europeia anunciou que vai dar início a uma revisão do Acordo de Associação com Israel – um acordo que está em vigor desde 2000 e que visa facilitar o diálogo político e o comércio entre as duas regiões. Kaja Kallas, chefe da diplomacia europeia considerou que é o momento de “avançar para esse exercício”, depois de os Países Baixos terem apresentado uma proposta nesse sentido na reunião dos chefes da diplomacia dos 27 Estados-membros. Mas nem todos estão de acordo – a Alemanha, por exemplo, já veio defender que o acordo de associação UE-Israel é “um fórum importante” onde são discutidas “questões cruciais”.
Esta postura demonstra que “a Alemanha está demasiado presa ao passado histórico e sente que, numa lógica de compensação, não pode atacar nem criticar Israel”, teoriza Tiago André Lopes. “O que acontece é que a Alemanha, uma vez mais, está a posicionar-se do lado errado da história, porque está a permitir, por inação, que aconteça tudo o que estamos a ver – a anexação de um território, o extermínio de um povo, a instrumentalização da fome.”
Ao assistir a tudo isto “de forma passiva, sem reagir”, a União Europeia está “a normalizar” o que está a acontecer no Médio Oriente. “E se nós estamos a normalizar ataques contra civis na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, depois não temos moralidade política nem ética para condenar nenhum outro conflito”, argumenta o especialista, voltando ao paralelismo com a guerra na Ucrânia. “Nós estamos a perder diplomaticamente a guerra da Ucrânia no Médio Oriente”, reforça.