Foi precisamente há 90 anos, a 10 de Junho de 1935. Lisboa estava enfeitada para as festas populares e as ruas transbordavam de pessoas, paradas nos passeios, de “nariz no ar”. Por cima delas estava a passar um gigante dos ares, um “colosso metálico”, que cruzava os céus lentamente. Era o dirigível Graf Zeppelin.
Foi uma das várias vezes em que estas gigantescas obras de engenharia alemã cruzaram os céus de Portugal, gravando-se no imaginário de quem os via como um símbolo de imponência, e fazendo notícia por onde passavam — tudo isto, poucos meses antes da explosão de um dos dirigíveis que ditou o fim deste transporte. Mas vamos por partes.
Nesse dia de 1935, os pontos altos de Lisboa “tinham sido tomados de assalto” por quem queria ter uma melhor vista do dirigível, que voava muito devagar e a baixa altitude. Pelas ruas, perguntava-se: “O Zeppelin já chegou?”, recorda o Diário de Notícias do dia seguinte. “Toda a tarde o lisboeta esteve de nariz no ar, ouvido alerta.” Pouco depois das 19h30, o dirigível surgiu sobre a cidade.
A passagem do dirigível rígido Graf Zeppelin por Lisboa
Estúdio Horácio Novais/Biblioteca de Arte Gulbenkian
As ruas eram um mar de gente. “Foi um delírio e um espanto”, refere o DN. “Até os sinaleiros esqueceram o que faziam e admiraram a majestosa nave.” Era um aparelho enorme, com mais de 230 metros (o que equivale a três aviões Boeing 747, um dos maiores aviões comerciais que existem), com a forma de uma bola de futebol americano e um forte brilho metálico.
“Imagine nunca ter visto um bicho daqueles e, de repente, ter uma coisa que tem o tamanho de quatro relvados de um campo de futebol no ar”, comenta o investigador em aeronáutica Henriques-Mateus, em conversa com o PÚBLICO. “Deu nas vistas, era uma coisa inimaginável.”
Segundo uma notícia breve do Diário de Lisboa de 11 de Junho de 1935, a “gigantesca aeronave” tinha desviado a sua rota para passar em Lisboa, a convite do Aero-Club de Portugal. Depois das 23h, passou também pelo Porto, “a poucas milhas de distância da costa”. Manteve comunicação radiotelegráfica e de bordo, informando que tudo corria bem.
“Lá vem ele!”
Como a passagem do Graf Zeppelin LZ-127 tinha sido anunciada nas vésperas, a população já esperava ver a gigantesca aeronave nos céus de Portugal. Só não esperavam o atraso: em Sintra, milhares de pessoas ficaram à espera por mais de 12 horas, num dia em que a chuva não deu tréguas.
O objectivo era amarrar o gigante prateado na Granja do Marquês, em Sintra, com o apoio de 300 soldados — o que não chegou a acontecer por causa das condições atmosféricas.
A chegada do zepelim alemão estava marcada para a manhã, quando “milhares de pessoas se iam acomodando, cheias de curiosidade,” na Granja do Marquês, onde agora fica situado o Museu do Ar. O dirigível acabou por não chegar a horas porque “o Atlântico estava a ser assolado por violenta tempestade e a aeronave marchava com precaução”, relatavam os jornais da época.
Os carros iam chegando às centenas e também os comboios e autocarros deixavam em Sintra “milhares de pessoas”. Confirmado o atraso, saíram em horda para almoçar: “Apareceram camionetas com sanduíches e bebidas, que fizeram bom negócio”. No jornal O Século dizia-se que, “em poucas horas, Sintra ficou sem pão, nem peixe, carne e ovos, pois tudo foi devorado pelos forasteiros”.
De tarde, a espera continuou por muitas horas. Só ao final do dia surgiu um ponto no céu, quase imperceptível de início: “Eram precisamente 19h15 quando o zepelim surgiu por detrás da serra de Sintra”. Aí, ouviram-se gritos: “Lá vem ele!”.
Estúdio Horácio Novais/Biblioteca de Arte Gulbenkian
Ainda que chovesse, “a tensão de nervos daquelas quinze mil pessoas era iniludível e contagiosa”, lê-se n’O Século. Estendiam-se dedos em direcção à serra de Sintra, envolva em névoa. “Avançava, num rumor surdo de motores, sereno e imponente”, eternizava o jornal. “Lá em cima, mãos de gente cortês desfraldaram as bandeiras nacionais alemã e portuguesa e, depois, a da cruz suástica. Das janelas acenavam com lenços e chapéus. Das cabinas dos motores assomaram os mecânicos a agitar os bonés”. Em 1935, já Adolf Hitler estava no poder há dois anos, estes dirigíveis que tinham surgido como um projecto de transporte pacífico acabaram por se tornar num símbolo da Alemanha nazi — mas já lá vamos.
Enquanto as pessoas admiravam o “dirigível monstro”, os tripulantes largaram os volumes de correspondência para a pista da Granja do Marquês. Eram várias malas com correspondência, que desciam amparadas por um pequeno pára-quedas — depois, seriam levadas para Sevilha de avião, com destino a Berlim.
Largada a carga, o dirigível seguiu para Lisboa, enquanto recomeçava a chover em bátegas, noticiavam os jornais. Apesar do espanto relatado por outros jornais, O Primeiro de Janeiro era mais céptico: desaparecido o zepelim, escrevia-se que, “em todo o caso, o momento não causou extraordinária surpresa, visto que o seu aparecimento não era uma coisa inédita”.
A primeira vez que um zepelim voou em Portugal
Esta não tinha sido, realmente, a primeira vez que um zepelim passava por Portugal. A 24 de Abril de 1929, a passagem do mesmo dirigível Graf Zeppelin LZ-127, a caminho do seu cruzeiro pelo Mediterrâneo, “provocou a maior e mais justificada curiosidade por ser a primeira vez que um dirigível vem a Portugal”, lia-se n’O Século. A manchete do DN dava-lhe igual importância, com a fotografia da aeronave a sobrevoar o Chiado: “Voou pela primeira vez em Portugal um dirigível”.
A primeira página do Diário de Notícias do dia seguinte à passagem do Graf Zeppelin por Portugal
Cortesia da Biblioteca Nacional de Portugal
Às 9h50 desse dia de 1929, o posto rádio de Monsanto recebia a comunicação em francês do comandante do dirigível a pedir autorização amigável para fazer uma “curta visita sobre a vossa bela e celebre capital”, para mostrar à população o Graf Zeppelin, também conhecido como “Conde Zeppelin”, “meio de transporte moderno”. O pedido era endereçado pelo comandante alemão Hugo Eckner — conhecido pelas suas críticas ao regime de Hitler — ao ministro da Aviação, mas como não existia (nem existe) esse cargo em Portugal, a mensagem foi entregue ao ministro da Marinha, que lhe respondeu e assinou de forma sucinta: “Dr. Eckner, Conde Zeppelin, Autorizo. Boa viagem. — Ministro”.
Por volta das 10h30 de 24 de Abril de 1929, “a grande aeronave voava sobre o Tejo”. Alguns aviadores decidiram ir ao encontro do dirigível e rodearam-no. “Junto do enorme dirigível, os aviões eram minúsculos pássaros” comentava o jornalista do DN.
O interesse também germinava por “se tratar de um aparelho celebrizado por viagens que tiveram repercussão mundial, como a recente travessia do Atlântico”, que concluíra pela primeira vez em 1928, num período de quatro dias, como recordava O Século.
A construção do dirigível Graf Zeppelin
E. O. Hoppe/Getty Images
A passagem do dirigível rígido pela capital portuguesa tinha sido anunciada previamente num telegrama vindo de Berlim. Era descrito como “o caso do dia” e levou milhares de pessoas a admirarem o “colosso metálico”, de pés assentes na terra e olhar pousado nos céus. Deu duas voltas pela cidade e desapareceu.
Subir e descer como um submarino
Nessa data, o DN escrevia aos seus leitores algumas curiosidades sobre a aeronave Graf Zeppelin: tinha 236 metros de comprimento e a parte mais alta tinha 36,5 metros. “É accionado por cinco motores, com a força de 530 cavalos cada um” e a sua maior velocidade era de 123 quilómetros à hora. Num percurso de 10 mil quilómetros, podia transportar uma carga de 15 toneladas.
Comparado com os aviões, era lento, mas tinha uma autonomia muito maior. Comparado com os navios, era bem mais rápido. “Podia fazer Berlim a Nova Iorque em quatro dias”, compara o consultor do Museu do Ar, Henriques-Mateus. O preço também era muito mais elevado, não era um meio acessível.
O Graf Zeppelin é considerado o dirigível de maior sucesso na história e um dos que mais viajaram, tendo feito centenas de viagens e transportado mais de 10 mil passageiros. Levou cientistas ao Árctico em 1931 e deu a volta ao mundo em 1929, ao longo de 21 dias. Por cada viagem transatlântica, o zepelim levava cerca de 40 mil cartas.
A sala de refeições no interior do dirigível Graf Zeppelin
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O zepelim Hindenburgo a ser puxado por cordas ao chegar a Frankfurt, na Alemanha
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De resto, é preciso “imaginar que esta máquina aerostática ascendia e navegava como um submarino” e não tanto como um avião, explica Henriques-Mateus. Nas imagens antigas é até possível ver pessoas a puxarem os grandes dirigíveis, com cordas, ou puxando-os directamente pela parte inferior. Os zepelins voavam por terem enormes envelopes com um gás que os fazia flutuar, por ser mais leve do que o ar.
No caso dos dirigíveis alemães, o gás que utilizavam era o hidrogénio — um gás fácil de obter, mas altamente inflamável, que viria a quebrar o seu legado. “Aquilo era perigoso, um perigo controlado, não era suposto voar com hidrogénio”, explica Henriques-Mateus, investigador agregado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto na área da aeronáutica. “Os alemães tinham hidrogénio, era fácil de fabricar; o hélio não era. Quem tinha hélio eram os norte-americanos e não o vendiam.”
O tecido de algodão que protegia a estrutura metálica destes dirigíveis rígidos estava impregnado com uma substância de alumínio para proteger o interior da radiação — e fazia com que o zepelim brilhasse. “Era uma coisa prateada enorme”, comenta o especialista. Na construção do Graf Zeppelin em Friedrichshaffen, na Alemanha — onde há agora um museu dedicado aos zepelins —, foram utilizadas 30 toneladas de dura-alumínio e 120 quilómetros de fio metálico. “Era uma obra de engenharia fantástica”, resume Henriques-Mateus.
Por baixo das gigantescas bolsas de ar, havia uma gôndola com o equipamento de navegação e cabines para os tripulantes e passageiros. Havia uma pequena cozinha que só funcionava com equipamentos eléctricos. A bordo destes dirigíveis, as salas de jantar eram espaçosas e bem decoradas, havia bar e restaurante, assim como quartos apertados com beliches e casas de banho. Era quase um cruzeiro dos céus, um transporte de luxo: era possível comer, beber, dormir e ver a paisagem pelas janelas (que podiam ser abertas).
No caso do dirigível Hindenburgo, que era maior e foi construído depois, o espaço para mais de 50 passageiros estava localizado mesmo no interior do zepelim e não na gôndola. Havia mais espaço para caminhar, uma sala de leitura e até um piano — além disso, tinha aquecimento, ao contrário do Graf Zeppelin, no qual os passageiros diziam ficar gelados. O mais surpreendente numa aeronave repleta de um gás inflamável é que havia também uma sala para fumar, pressurizada para evitar fugas; e o isqueiro tinha de ser eléctrico. O lounge do Hindenburgo tinha ainda uma decoração com as rotas de Fernão de Magalhães e de Vasco da Gama.
A sala de refeições no interior do dirigível Hindenburgo
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A proeza do espaço usada pelos nazis
Os zepelins passaram por Portugal algumas vezes a caminho de outras localidades, mas também para fazerem reconhecimento de terreno para a rota do Atlântico, conta o investigador Henriques-Mateus. Lembra-se de ouvir histórias de quem viu passar o zepelim nos Açores, quando entrou pelo lado dos Capelinhos. “Aquilo impressionou tanto as pessoas que, naquela freguesia rural, os sinos tocaram e as pessoas reuniram-se na igreja com medo do que seria aquela coisa que nunca viram.”
O investigador refere que o zepelim causou tanto espanto nas pessoas da época que trespassou para a cultura popular. Na altura, até uma rede de camionetas da Trafaria, a Piedense, usava o zepelim como seu logótipo, adornando a parte lateral dos autocarros. “O zepelim era considerado tão moderno, tão confortável, tão rápido que era utilizado em publicidade.” Fizeram-se brinquedos com o dirigível, ilustrações, contos infantis. Henriques-Mateus também se lembra da história de uma criança que ficou fascinada com o dirigível por ser “verdadeiramente uma coisa do espaço”. Era “um símbolo de modernidade poderosíssimo”.
Foi graças ao conde alemão Ferdinand Adolf von Zeppelin, oficial na Guerra Franco-Prussiana (1838-1917), inventor destes dirigíveis, que foi dado o nome de zepelim a estes aparelhos — em Portugal, o dirigível também era descrito como “Conde Zeppelin”, a tradução alemã de “graf”. O militar começou a desenvolver a ideia desta aeronave em 1874 e o seu primeiro dirigível voou em 1900.
Em 1909, os zepelins levaram à criação da primeira companhia aérea do mundo, a DELAG, com ligações comerciais para transporte de passageiros. Graf von Zeppelin acabou por morrer antes de ver um dos seus sonhos concretizado: assistir a um voo transcontinental. Além do primeiro voo transatlântico em 1919 num avião, também o dirigível Graf Zeppelin acabaria por cruzar o oceano em 1928.
Apesar das sucessivas proezas, este meio de transporte ficou associado a um período negro da história: na Primeira Guerra Mundial, os zepelins foram utilizados pelos alemães para bombardear cidades como Paris ou Londres.
Quando passaram por Portugal, os zepelins já eram um símbolo da Alemanha nazi. “Aliás, o Hindenburgo LZ-129 tinha bem visível as suásticas no seu exterior e era considerado o suprassumo dos suprassumos da tecnologia alemã”, comenta Henriques-Mateus. “Os ingleses e os norte-americanos também tinham dirigíveis, mas nada que se comparasse com aeronaves daquele tamanho. Era realmente uma coisa muito inovadora, uma espécie de paquetes do céu.”
O fim dos zepelins
Depois da passagem por Portugal em 1929 e 1935, os portugueses puderam ainda ver outro dirigível alemão a rasgar os céus. A 7 de Setembro de 1936, quando a Guerra Civil de Espanha fazia manchetes nos jornais, havia outra notícia à espreita, num tom menos enérgico do que nos anos anteriores: o dirigível Hindenburgo — que viria a explodir um ano depois —, tinha passado por Lisboa e deixado cair em Alverca sacos de correio vindos da América do Sul.
A explosão do dirigível Hindenburgo, em Lakehurst, na Nova Jérsia, em 1937. Morreram 36 pessoas, mas houve sobreviventes
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Até foram mandados retirar alguns automóveis com receio de que os 200 quilos de correio, que vinham amparados por pára-quedas, lhes pudessem cair em cima. “Um dos sacos caiu, com fragor, junto da multidão, pois o pára-quedas não se abriu a tempo”, lê-se no Diário de Notícias do dia seguinte — uma criança ainda foi derrubada pelos sacos, “sem consequência de maior, a não ser o susto”.
Às 12h30, surgiu um ponto branco sobre Lisboa. Lento: “Era de notar o seu pouco andamento.” A assistência estava a admirar o “gigante dos ares”, que era “mais bojudo que o Graf Zeppelin”. O Hindenburgo continua a ser a maior aeronave jamais construída — para comparação, só tinha menos 30 metros do que o Titanic.
Pelas 13h nesse dia de 1936, “viu-se então, distintivamente, que um dos seus quatro motores não funcionava, razão do seu atraso”. O Hindenburgo passou ainda por Santarém e Alcobaça, “onde se deteve algum tempo sobre o mosteiro”. De seguida, partiu “em direcção à Alemanha, contornando a costa portuguesa para não atravessar a Espanha”, relatava O Primeiro de Janeiro de 8 de Setembro de 1936.
O seu destino final estava próximo. Menos de um ano depois, a 6 de Maio de 1937, em Lakehurst, na Nova Jérsia, o dirigível irrompeu em chamas, que destruíram em segundos toda a aeronave. A explosão causou a morte a 35 pessoas — 13 passageiros e 22 tripulantes — de um total de 97 pessoas que seguiam a bordo (36 passageiros e 61 tripulantes); e ainda morreu outra pessoa que estava em terra.
“Oh, the humanity!”, relatava o repórter Herbert Morrison perante a desgraça, que se pensa ter sido causada por uma descarga electrostática que incendiou uma fuga de hidrogénio. Naqueles poucos segundos de um dia chuvoso, ardeu no ar o futuro destes dirigíveis, que até ali tinham transportado dezenas de milhares de passageiros ao longo de 30 anos. Foi o momento que marcou o fim da era de ouro dos zepelins.
“Foi muito breve a época dos zepelins”, considera Henriques-Mateus. Além da explosão, “a eclosão da Segunda Guerra não permitia máquinas daquelas no ar, nem sequer como máquinas militares porque eram facilmente abatidos por qualquer avião”, comenta o especialista. Com o rearmamento, o que era pedido eram aviões, “aviões em força”. O Graf Zeppelin acabou por ser desmantelado em 1940 e a sua carcaça foi reaproveitada para construir aviões de guerra, refere a BBC.
Mas foi “a explosão que acabou com os zepelins, sem dúvida”, admite Henriques-Mateus. Passados mais de 100 anos, ainda sobrevive alguma esperança. O investigador acredita que, hoje, “a era do dirigível ainda não acabou, de todo”. “Acabou foi como transporte de passageiros”, diz. “Há empresas que estão a estudar dirigíveis para transporte a longa distância porque, apesar de ser um meio relativamente lento, pelo ar é rápido, relativamente barato e não está sujeito a trânsito.”
Hoje ainda existem alguns dirigíveis com o mesmo formato, ligados à meteorologia ou com mensagens publicitárias (como o famoso blimp da fabricante de pneus Goodyear). “Não é uma coisa vulgar, mas há uns moderníssimos”, refere Henriques-Mateus. E há empresas que querem resgatar esta forma de viajar calmamente pelos ares. Deixam-nos a pensar como seriam os céus de hoje se a catástrofe do Hindenburgo não tivesse acontecido.