Era previsível. Depois das restrições à imigração e ao acesso à nacionalidade, vêm os ataques às ameaças fantasma do multiculturalismo e da burqa. A cartilha foi testada com sucesso noutros países europeus e os nossos decisores políticos não querem ficar atrás. Afinal, se o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) até concordou com a proibição da burqa e do niqab nos espaços públicos franceses, porque não fazer o mesmo por aqui e mostrar quem manda e como somos valentes a defender os “nossos valores”? Felizmente, o Tribunal Constitucional (TC) português terá uma palavra a dizer sobre a matéria.

Na decisão S.A.S. contra França, de 2014, o TEDH concluiu que a restrição imposta pela lei francesa à ocultação do rosto nos espaços públicos se justificava em nome da preservação das condições de vida em comum e não era desproporcionada, já que decorria de uma decisão política sobre o modelo de sociedade pretendido pelos franceses, domínio em que as autoridades nacionais dispõem de uma ampla margem de apreciação (§§ 153-159). Como tem feito sempre que os assuntos são sensíveis, o TEDH escusou-se a censurar as opções dos decisores nacionais a pretexto de que estes estão em melhor posição para avaliar as necessidades de regulação no terreno (§ 129). Não deixou, em todo o caso, de rejeitar abertamente os argumentos aduzidos pelo governo francês a respeito da promoção da igualdade de género e da salvaguarda da segurança pública (§§ 118 e 139). Fica a nota.

Vale a pena também recordar que esta não foi a única pronúncia de organismos internacionais de supervisão sobre o assunto. Em 2018, o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas chegou a uma conclusão completamente diferente da do TEDH quando se pronunciou sobre duas queixas de mulheres muçulmanas contra o Estado francês. Segundo o Comité, a proibição genérica da ocultação do rosto em espaços públicos e a sua aplicação às autoras das queixas violara os direitos destas à liberdade de religião e à proteção contra tratamentos discriminatórios fundados na religião e no sexo, em desrespeito pelo disposto nos artigos 18.º e 26.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (§§ 8.15-9/7.15-8). Um tratado de que Portugal também é Parte.

O TC português nunca foi chamado a pronunciar-se sobre restrições ao uso de símbolos religiosos, mas tem uma jurisprudência notável em matéria de liberdade de religião que nos permite confiar que as restrições agora em discussão no Parlamento não passarão o crivo de constitucionalidade, por violarem a liberdade de religião consagrada no artigo 41.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), tomado isoladamente ou em conjugação com o princípio da igualdade do artigo 13.º.


O ascendente do TEDH pesará pouco, se o Tribunal Constitucional mantiver – como esperamos que mantenha – a leitura adotada no acórdão n.º 544/2014 quanto ao nível de proteção mais elevado. Nesse acórdão, em que estava em causa a dispensa de trabalho por motivo religioso, o TC entendeu que a jurisprudência do TEDH ao abrigo do artigo 9.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos deixava muito a desejar quando o assunto era a proteção da liberdade de religião dos trabalhadores e que, naquele caso, o nível de proteção mais elevado era o oferecido pelo artigo 41.º da CRP, atenta a “dimensão positiva” reconhecida à liberdade de religião na jurisprudência constitucional portuguesa.

Esperamos que o TC mantenha esta linha de raciocínio e se distancie da jurisprudência do TEDH, cuja deferência perante a margem de apreciação dos Estados tem sido muito criticada. É o que nos parece mais consentâneo com os nossos valores de igualdade e não discriminação, pluralismo de expressão e respeito pela dignidade da pessoa humana.

A autora escreve segundo o acordo ortográfico de 1990