A publicação
Num vídeo divulgado na rede social X, que pretende mostrar um alegado “protesto em frente à residência oficial de Luís Montenegro”, onde se vê e ouve um manifestante dizer: “Vamos deixar um comunicado ao Governo português: ou vocês resolvem isso com máxima urgência, ou então as coisas vão ficar feias”.
O contexto
Na passada quinta-feira, 3 de Julho, uma conta anónima de apoio ao Chega na rede social X, com o pseudónimo “Sr. Dr. Zé Nunes”, publicou um vídeo de 19 segundos de um alegado “protesto em frente à residência oficial de Luís Montenegro” onde se vê e ouve um manifestante de megafone a dizer: “Ou vocês resolvem isso com máxima urgência, ou então as coisas vão ficar feias”. O tweet, que não indicava qual a origem e o contexto das imagens, obteve mais de 23 mil visualizações e dezenas comentários, muitos deles de teor racista e com pedidos de deportação devido à “ameaça” feita num alegado protesto junto à residência oficial do primeiro-ministro, em Lisboa.
No dia seguinte, sexta-feira, outra conta do mesmo espectro voltou ao tema, embora sem publicar aquele vídeo. Num tweet já com mais de 154 mil visualizações e centenas de partilhas e comentários, a conta “Questiona-te” afirma que “a comunidade imigrante de Angola fez uma manifestação em frente à residência oficial do primeiro-ministro e ameaçou a segurança interna de Portugal”. Os autores desse tweet acrescentam que “o porta-voz angolano afirmou que as coisas ficarão ‘feias’ caso bloqueiem a sua entrada em Portugal” — afirmação que não existe no vídeo.
Os factos
Uma pesquisa do fotograma do vídeo que mostra a alegada residência do primeiro-ministro revela em segundos que se trata na verdade de um dos edifícios da embaixada portuguesa em Londres, nomeadamente a residência do embaixador. A pista seguinte foram alguns elementos gráficos também visíveis no vídeo e facilmente associáveis a Angola.
Estas duas pistas permitiram chegar a um dos vídeos de convocação daquele protesto para o dia 28 de Junho, numa iniciativa solidária pela morte de Maria Luemba, jovem angolana de 17 anos encontrada sem vida em casa, na vila de Sever do Vouga, Aveiro, a 12 de Junho.
Pesquisas posteriores no Youtube e no TikTok permitiram encontrar vários vídeos do protesto realizado em Londres, incluindo o vídeo original de quase três minutos de onde foram extraídos os 19 segundos que circulam em Portugal. Nesse vídeo, é possível ouvir uma versão mais completa da intervenção daquele manifestante. Entre as afirmações, destaca-se o “sentimento de tristeza e de revolta” pela morte da jovem, sobretudo “contra a justiça portuguesa e contra o Governo português, que está a fazer vista grossa a esta situação”.
“Não nos podemos calar (…). Estamos chateados com essa situação e vamos deixar aqui um comunicado ao Governo português: ou vocês resolvem isso com máxima urgência, ou então as coisas vão ficar feias, porque uma vida perdida é uma vida, independentemente da cor da pele, da raça, todos nós temos sangue, o sangue é só vermelho”, afirmou o manifestante. No discurso, foi também pedida a solidariedade do povo português, lembradas outras mortes de africanos em Portugal e criticada a inacção do Governo angolano.
Além destes dados, acresce que a manifestação realizada em Lisboa sobre o mesmo tema decorreu no dia seguinte, dia 29 de Junho, com uma marcha pacífica entre o Rossio e a Praça do Comércio, pelo que os manifestantes nunca estiveram perto da residência oficial do primeiro-ministro, o Palacete de São Bento, nas traseiras da Assembleia da República.
A Lusa contactou o autor de alguns dos vídeos do protesto em Londres, Kuabo Mabula, que explica que apenas pretenderam passar mensagens de solidariedade e de justiça. Foi também possível chegar à fala com o manifestante que está a ser visado nas redes sociais em Portugal. Isménio Samuel, com dupla nacionalidade angolana e portuguesa, que desconhecia que a sua intervenção estava a ser aproveitada pela extrema-direita para o atacar com informações deturpadas.
“Não ameacei ninguém. Fiz um alerta, uma chamada de atenção à justiça portuguesa e ao Governo português porque nos sentimos injustiçados com o que se passou e mostrámos o nosso descontentamento. Disse que as coisas podiam ficar feias porque quem sofre uma baixa daquelas tem um sentimento de fúria por não haver justiça. E se não virem justiça as pessoas podem revoltar-se”, explica. “Queremos que haja união, mas não podemos continuar a morrer sem justiça. Uma família que perde um filho sente-se revoltada e quer que o culpado seja penalizado.”
O veredicto
É falso que manifestantes angolanos ameaçaram Portugal e que o tenham feito num protesto realizado junto à residência oficial do primeiro-ministro, em Lisboa. O vídeo que circula nas redes sociais mostra um protesto convocado na sequência da morte de Maria Luemba, realizado junto à embaixada portuguesa em Londres, no qual participaram pessoas de várias nacionalidades.