Estela Silva / Lusa
Porque não foi criada uma petição pública para a Indonésia ficar com o antigo Presidente da República?
“Em primeiro estão os portugueses!” ou “em primeiro estão alguns portugueses”?
Do regresso de Mariana Mortágua, Miguel Duarte, Sofia Aparício e Diogo Chaves esperava-se, no mínimo, um momento de suspiro e compaixão geral por quatro portugueses que, de livre vontade, arriscaram a sua segurança para, de forma pacífica, fazerem algo contra o que são realidades inevitáveis, dois anos de guerra depois:
- a morte de 1 em cada 3 pessoas de Gaza (mais de 67 mil palestinianos, entre os quais cerca de 20 mil crianças);
- a fome generalizada no enclave, devido ao bloqueio da ajuda humanitária levado a cabo por Israel e EUA. Pelo menos 459 pessoas morreram à fome, incluindo 154 crianças;
- a ocupação israelita de quase todo o território da Faixa de Gaza e a deslocação forçada de praticamente toda a população, que levou a milhares de desaparecidos e à separação de famílias;
- a destruição de 92% da estrutura residencial de Gaza, segundo a ONU, de 125 hospitais e clínicas e de 89% da infraestrutura sanitária, hoje danificada ou destruída;
- o conflito mais mortífero da história para jornalistas de todo o mundo, com mais de 300 jornalistas mortos.
É a realidade, aconteceu e está a acontecer, culpe-se ou não Israel e o governo de Benjamin Netanyahu. Mas a compaixão não foi geral.
Surpreendentemente, aqueles que mais gritam “em primeiro estão os portugueses!” não sentem compaixão por Mariana Mortágua nem pelos outros três portugueses que, após terem passado mais de um mês num barco e três dias detidos pelas forças israelitas —de forma nada pacífica, alegadamente — regressaram este domingo a Portugal. Muito pelo contrário.
À chegada, a coordenadora do Bloco de Esquerda pediu descanso e agradeceu o acompanhamento consular prestado a si e aos restantes ativistas. Agradeceu “à nossa estrutura diplomática, ao cônsul em Israel e à embaixadora em Israel”.
O ‘obrigado’ da deputada não se estendeu ao Governo. E porque iria Mortágua agradecer ao Executivo de Luís Montenegro?
Afinal, o primeiro-ministro criticou a missão humanitária, tal como o ministro da Defesa Nuno Melo, que copiou a narrativa israelita e classificou a viagem pacífica com destino a Gaza como “panfletária”, irresponsável” e acusou Mortágua de colaborar com “terroristas”.
E apesar de Paulo Rangel, ministro dos Negócios Estrangeiros, ter dito que a detenção é “ilegal” caso se confirme a ocorrência fora da jurisdição israelita, isto é, em águas internacionais, Montenegro evitou mais uma vez falar sobre a atuação de Israel. Até o silêncio tem voz, e a indiferença traduziu-se no povo português, em ódio.
Uma rápida vista de olhos nos comentários das notícias sobre a viagem da Flotilha Global Summud, nas redes sociais, e esse ódio sobressai e sobrepõe-se ao apoio aos quatro portugueses que, quer se goste quer não se goste, arriscam a sua segurança para mostrar solidariedade para com inocentes.
Uma petição pública dirigiu-se a “toda e qualquer pessoa que esteja farta de chatos” e pediu ao Estado de Israel que não devolvesse Mariana Mortágua a Portugal. Mais de 64 mil pessoas assinaram-na. Porquê? Única e simplesmente porque “já não a podemos aturar”, justifica a petição.
Mas uma viagem com muitas parecenças ‘dá à costa’ por causa de todo este assunto e traz consigo uma pergunta: se houvesse redes sociais em 1992, seria Ramalho Eanes massacrado por pessoas com semelhante falta de humanidade?
A “flotilha” Lusitânia Expresso
O Lusitânia Expresso partiu em 1992, também ele como uma viagem marítima com uma missão internacional de paz num cenário de guerra; também levava a bordo jornalistas, estudantes, figuras públicas e políticos, como um ex-presidente da República — para muitos, um dos melhores que a democracia já teve — António Ramalho Eanes.
A missão “Paz em Timor” foi uma iniciativa da revista Forum Estudante que, perante o massacre levado a cabo pela Indonésia em Díli a 12 de novembro de 1991 procurou — de forma muito semelhante, na prática, à flotilha para Gaza — condenar a violência cometida pela Indonésia em Timor Leste.
Nesse dia fatídico, cerca de dois mil timorenses foram alvo de disparos de militares indonésios durante uma homenagem a Sebastião Gomes, um membro da resistência timorense.
398 pessoas morreram, e o massacre foi uma janela para o que estava a acontecer em Timor — especialmente para os portugueses, que puderam ouvir, nas imagens partilhadas nas televisões, as vítimas a rezar em português momentos antes da sua morte.
Uma missão que partiu de Lisboa com 15 tripulantes, em defesa das vítimas do massacre, contava em Darwin três meses depois (8 de março de 1992) com 120 passageiros de 23 países a bordo.
O objetivo simbólico do ferry-boat era colocar uma coroa de flores no cemitério de Santa Cruz, em memória das vítimas. A missão teve como objetivo principal denunciar e condenar a violência cometida por um exército contra um povo e sensibilizar a opinião pública, o mesmo objetivo da Flotilla que parece ter passado ao lado de muita gente: Mortágua não foi levar latas de atum aos palestinianos, tal como Eanes não tentou ir a Timor para pôr flores na cabeça de 398 mortos.
E também como a flotilha, o Lusitânia Expresso foi sobrevoado e cercado por forças opostas à missão; também foi ameaçado por elas, quando se aproximou do seu destino final; também foi intercetado, à entrada das águas timorenses, por quatro navios de guerra destas forças opostas e forçado a voltar a Portugal.
Eanes e os outros ativistas nunca puderam colocar as flores no cemitério: lançaram-nas ao mar, em memória das vítimas, e a viagem, como recorda a RTP, “foi um marco na história da luta pela libertação e pela independência de Timor Leste”, que se concretizaria 10 anos depois. E a petição pública para expulsar Ramalho Eanes de Portugal está ainda por encontrar.