Com os bloqueios impostos por Israel desde os ataques do Hamas, o balanço de vítimas na Faixa de Gaza nos últimos dois anos tem sido difícil de apurar com exatidão – e os números são sempre refutados por Telavive, que não deixa ninguém entrar em Gaza, nomeadamente jornalistas. Este é o retrato possível do que aconteceu desde 7 de outubro de 2023, com base em números das autoridades israelitas e em dados das autoridades locais em Gaza, de agências da ONU e de organizações não governamentais ainda com funcionários no terreno

Madrugada de 7 de outubro de 2023. Mais de 5 mil militantes do Hamas, a facção palestiniana que controla a Faixa de Gaza desde 2006 e que é considerada uma organização terrorista pela comunidade internacional, furam a fronteira hipervigiada com Israel e invadem o sul do país.

Numa onda de homicídios inédita na história do povo judeu desde o Holocausto, mais de mil pessoas são mortas e outras 8.730 ficam feridas. Segundo uma investigação das próprias forças armadas israelitas, que assumem “falhas” na resposta ao ataque, as chefias militares em Telavive levaram quase 10 horas a aperceberem-se de que a fronteira sul tinha sido invadida – durante esse período, pouco mais de 700 soldados tentaram proteger a fronteira de 59 quilómetros de extensão. Cerca de 370 morreram, o que faz com que o total de mortos seja de

1.139

o que inclui civis (695, entre os quais 36 crianças e 71 estrangeiros) e militares.

Quando a operação terminou, o Hamas tinha levado para a Faixa de Gaza 251 reféns. Dois anos volvidos, 148 foram libertados em troca de prisioneiros palestinianos – 140 vivos e oito mortos –, a par de outros oito resgatados com vida por Israel, que também conseguiu recuperar outros 51 corpos. Neste momento, crê-se que permanecem no enclave palestiniano 48 reféns, dos quais 20 ainda vivos. Os números são os noticiados pelas autoridades israelitas nos últimos 24 meses.

Naquele dia, há precisamente dois anos, o primeiro-ministro israelita declarou: “Israel está em guerra.” Desde então, no que o governo de Benjamin Netanyahu continua a invocar como uma operação de “autodefesa” – e que um número crescente de organizações considera ser o genocídio em prática dos palestinianos da Faixa de Gaza –, o número de vítimas mortais em ataques aéreos, bombardeamentos e operações terrestres no enclave é de

67.160

desde 7 outubro de 2023 – metade dos quais mulheres, idosos e crianças. Os dados são das autoridades locais em Gaza.

Segundo uma investigação da Reuters com base nos dados oficiais das autoridades em Gaza, mais de um quinto dos mortos até hoje eram crianças com menos de 12 anos. De acordo com a Unicef, desde 7 de outubro de 2023, Israel matou em média mais de uma criança por hora, no correspondente a uma sala de aulas cheia de crianças por dia. Os balanços têm por base a compilação dos números divulgados diariamente pelo Hamas, que gere o Ministério da Saúde e restantes organismos públicos de Gaza. Por esse motivo, Israel tem sustentadamente questionado a sua veracidade. É importante notar, contudo, que várias investigações independentes têm apurado que os números correspondem à realidade ou, quanto muito, representam o limite inferior do total de vítimas em dois anos de ofensiva israelita. 

A 6 de dezembro de 2024, académicos da Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, publicaram um estudo revisto por pares no jornal especializado The Lancet que indica que os números correspondem à realidade. Em maio de 2024, a revista Economist também concluiu que os balanços das autoridades de Gaza são “legítimos” e que correspondem ao “limite inferior” de vidas perdidas, assumindo que os números reais podem ser superiores. Um dos números é este:

Já em janeiro deste ano, uma outra investigação publicada na Lancet apontou que o número real de vítimas pode ser 40% superior ao reportado. Num encontro de oficiais em agosto passado, um ex-comandante do exército de Israel apontou que mais de 20% dos mais de 2,2 milhões de habitantes de Gaza – o correspondente a mais de 200 mil pessoas – foram mortas ou feridas em ataques israelitas desde outubro de 2023.

Arquitetura da fome e ocupação

Em dois anos, houve um cessar-fogo implementado em Gaza, durante o qual houve oito trocas de prisioneiros entre Israel e o Hamas. A trégua vigorou entre 19 de janeiro e 18 de março, quando o governo Netanyahu decidiu unilateralmente pôr-lhe fim. Desde então, Israel impôs um bloqueio quase total à entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza, dando origem a uma crise de fome aguda que, de acordo com a agência da ONU para os Refugiados Palestinianos (UNRWA), já levou à morte de pelo menos

440 pessoas

entre as quais 147 crianças.

Em resultado da ofensiva israelita antes e depois da trégua, segundo dados oficiais do instituto de estatísticas de Gaza, pelo menos 39.384 crianças ficaram órfãs até abril de 2025 – dessas, cerca de 17 mil perderam o pai e a mãe, indica a Unicef. Também com base em dados das autoridades do enclave, revistos e publicados pela agência Reuters numa investigação de fundo ao balanço da guerra em Gaza, houve mais de 1.200 famílias inteiras exterminadas nos ataques israelitas.

Entre os feridos, que até ao início desta semana eram mais de 169 mil, contam-se cerca

4.000

crianças amputadas, segundo números compilados pelo International Rescue Committee.

Até 24 de setembro, foram ainda confirmadas as mortes de 543 funcionários humanitários, incluindo 370 pessoas ligadas à UNRWA, em ataques israelitas – destas, 304 eram funcionárias da agência da ONU e 66 davam apoio às suas operações no terreno. A par disto, Israel também já matou pelo menos 210 jornalistas palestinianos, segundo um balanço da organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras (RSF), com Telavive a impedir continuamente a entrada de jornalistas estrangeiros e de investigadores independentes.

A ofensiva contra a Faixa de Gaza salda-se, até agora, em mais de 1 milhão de deslocados internos, pessoas de todas as idades forçadas a abandonar as suas casas e a moverem-se para outras zonas do território – segundo dados do gabinete da ONU para a coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), há neste momento pelo menos 1.168.835 deslocados na Faixa de Gaza (cerca de 53% do total de habitantes). As forças israelitas já destruíram total ou parcialmente 90% do território e neste momento controlam 82% do enclave.


Mohammed, filho de 18 meses de Hedaya al-Muta’wi, sofre de desnutrição devido à fome e pesa apenas 6 kg. Sofre de fadiga e já não consegue ficar de pé ou sentar-se. Imagem tirada em Gaza em julho de 2025 foto Hamza Z. H. Qraiqea/Anadolu via Getty Images

Efeito de contágio na Cisjordânia ocupada

A ocupação não declarada de 82% da Faixa de Gaza tem sido acompanhada da expansão da ocupação da Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, onde desde 7 de outubro de 2023 têm aumentado os ataques de colonos e as operações das forças armadas israelitas. De acordo com o OCHA, pelo menos 994 palestinianos foram mortos no território nos últimos dois anos, incluindo pelo menos 212 crianças. Desses, 965 foram mortos por soldados, 19 por colonos extremistas e 10 em circunstâncias por apurar, indica o mesmo gabinete das Nações Unidas.

A par disso, segundo números do gabinete da ONU para a coordenação de assuntos humanitários (OHCHR) citados pela Associated Press, mais de

9.400

pessoas foram detidas por Israel na Cisjordânia ocupada e em Jerusalém Oriental até ao final de junho deste ano. E com a expansão dos colonatos e da expropriação de terras e casas, até agosto de 2025 havia a registar 39.558 deslocados internos.

Num fenómeno relatado de perto por duas importantes organizações não governamentais israelitas contra a ocupação, a Peace Now e a B’Tselem, o número de demolições de casas e outras infraestruturas geridas por palestinianos nos territórios ocupados também aumentaram nos últimos dois anos. Com base nas investigações dessas e de outras organizações no terreno, o OCHA adiantou no final de setembro que houve 1.384 demolições entre 1 de janeiro e de 30 de setembro de 2025, a juntar às 1.768 demolições registadas entre janeiro e dezembro de 2024.


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As mesmas duas organizações israelitas responsáveis por mapear a expansão dos colonatos e a expropriação de palestinianos na Cisjordânia ocupada assinaram, no final de julho, um relatório a acusar o próprio país de estar a cometer genocídio dos palestinianos com as suas ações em Gaza. 

Numa entrevista à CNN Portugal há duas semanas, Yair Dvir, porta-voz da B’Tselem, tinha destacado precisamente o aprofundar da ocupação, referindo que, “só nos últimos dois anos, 41 comunidades foram expulsas pela violência dos colonos, que são apoiados pelo próprio exército”, havendo “muitas comunidades sob a mesma ameaça”. Na mesma entrevista, Dvir ressaltou que, “se Israel não for travado, o genocídio não só vai continuar na Faixa de Gaza como vai estender-se à Cisjordânia”.

Peace Now e B’Tselem não estão sozinhas nas acusações de genocídio. Depois de divulgarem o seu relatório conjunto, a associação de académicos que estudam o genocídio (IAGS) publicou as suas próprias conclusões sobre os crimes de genocídio a serem cometidos por Israel, num relatório que obteve a aprovação de 86% dos seus 500 membros. E, já depois disso, naquele que foi considerado o mais contundente e importante documento até à data neste sentido, uma comissão independente mandatada pela ONU acusou oficialmente Israel – em particular três dos seus líderes políticos, sendo um deles Netanyahu – de estarem a cometer “quatro de cinco crimes de genocídio” na Faixa de Gaza, à luz da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948.

“É evidente que existe uma intenção de destruir os palestinianos em Gaza através de atos que correspondem aos critérios estabelecidos na Convenção sobre Genocídio”, indicou a advogada sul-africana Navi Pillay, presidente da comissão de inquérito que foi alta comissária da ONU para os Direitos Humanos entre 2008 e 2014. 

O relatório aponta, com base em todos os dados e indicios disponíveis, que

83%

das vítimas mortais em Gaza eram civis – que morreram no âmbito de uma “política concertada” de destruição do sistema de saúde do enclave, com as forças israelitas a demonstrarem um padrão de ataques diretos a crianças “com a intenção de as matar”, escrevem os investigadores.

As conclusões dos investigadores independentes não são vinculativas, mas podem vir a ser utilizadas em procedimentos judiciais quando um dia os suspeitos responsáveis forem julgados no Tribunal Internacional de Justiça, sob tutela da ONU, e no Tribunal Penal Internacional – ambos já com investigações em curso às operações israelitas em Gaza.

O relatório da comissão independente foi publicado dias antes da última assembleia-geral da ONU, no final de setembro, durante a qual vários países, incluindo dois com assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas – Reino Unido e França – reconheceram o direito da Palestina à autodeterminação. Nenhum desses países descreveu, até agora, a ofensiva que Israel está a conduzir na Faixa de Gaza como genocídio.