A Europa acorda para uma ameaça que já dura décadas, orquestrada por Moscovo nas sombras da “paz”. E agora poderá ter de fazer “coisas semelhantes”, mesmo que não esteja tão preparada
Tem milhares de anos, combate-se nas sombras, sem mísseis, aviões e blindados, mas pode “provocar imensa destruição num país” por apenas uma fração do valor que se gasta num conflito militar. Não se trata de batalhas abertas, mas de uma teia invisível que atravessa domínios múltiplos, sempre com o objetivo de esconder a origem do ataque. “Algo novo e perigoso está a acontecer”, alertou Ursula von der Leyen, na semana passada, no Conselho Europeu que decorreu em Copenhaga. Mas os especialistas garantem que esta guerra já está na Europa há muito tempo e veio para ficar.
“Há muito tempo que a Europa está a ser alvo de uma guerra híbrida. Ela vai aumentar, porque é especialmente importante para a Rússia, nesta altura. Pelo preço de um míssil, é possível pagar 200 líderes de opinião em França durante um ano. É um gasto muito eficaz”, alerta o historiador António José Telo em declarações à CNN Portugal.
A presidente da Comissão Europeia não poupou palavras na capital da Dinamarca, onde defendeu que os 27 devem proteger “cada centímetro quadrado” contra esta ameaça multifacetada que Moscovo está a criar na União Europeia, referindo-se às repetidas incursões de drones, sabotagens e ciberataques. A líder europeia alertou que esta é “uma campanha coerente e crescente” com o objetivo de perturbar os cidadãos europeus e “testar a determinação” e dividir o Ocidente.
Em causa estão as dezenas de incidentes que atingiram vários países europeus nos últimos meses, com cabos submarinos cortados, centros logísticos paralisados com ciberataques, drones a obrigar o encerramento de aeroportos, bem como campanhas de influência de larga escala para tentar eleger partidos políticos próximos dos interesses do Kremlin. Apesar de serem mais discretas, estas operações têm “um custo-benefício enorme”, representando apenas uma fração dos gastos militares russos.
Mas para António José Telo, que também é professor e investigador em estratégia militar, estas atividades não só não são novas, como têm raízes que remontam aos tempos da Guerra Fria, quando os comunistas começaram por criar “uma quinta coluna” que passava por infiltrar uma sociedade com pessoas e instituições que defendem os seus interesses. “Sempre existiram guerras híbridas, embora nem sempre se fale delas”, recorda.
E a Rússia nunca o escondeu. Em 2012, o Kremlin formalizou o papel da guerra híbrida na sua doutrina militar, integrando operações de informação, cibernéticas, económicas e políticas, como ferramentas para alcançar objetivos sem necessariamente escalar para um confronto aberto total. Os russos chamam-lhe “a guerra por outros meios” e esta mudança foi orquestrada em 2013 pelo homem responsável pelas operações militares na guerra na Ucrânia: Valery Gerasimov, chefe do Estado-Maior Geral das Forças Armadas russas.
“Os russos utilizam métodos diversos que não permitem detetar a origem dos ataques, como a guerra cibernética ou a manipulação de informação. O objetivo é criar pânico e alarme nos europeus, com o objetivo de inibir o processo de decisão na Europa e provocar divisões. Não há aviões e carros de combate, mas hoje, à distância, é possível provocar imensa destruição num país”, explica o tenente-general Marco Serronha.
Este tipo de ações é extremamente eficaz em sociedades democráticas, onde a Rússia foi capaz de criar redes de apoiantes pagos, com comentadores, líderes de opinião, universidades, sindicatos e até instituições desportivas. Tudo isto é feito através de uma rede de financiamentos opacos e difusos. Segundo o professor António José Telo, a defesa para estes ataques passa por duas coisas que a Europa, neste momento, não tem: coesão e valores firmes.
“É muito difícil de combater esta guerra, porque a principal defesa está na coesão política e na existência de valores firmes na sociedade, duas coisas que não existem atualmente. A Europa está numa confusão tremenda e é fácil inflamar as divisões já existentes”, admite o historiador.
Por esse motivo, a presidente da Comissão Europeia sugeriu criar medidas para travar as ameaças russas que vão além “da defesa tradicional”. Assim, defende uma “nova mentalidade” com unidade, dissuasão e determinação. Mas para o tenente-general Marco Serronha, a resposta passa pela criação de mecanismos semelhantes que possam ser utilizados contra a Rússia.
“Os europeus não têm essa metodologia de ação estratégica nos seus adversários. É preciso uma guerra cibernética ofensiva, é preciso fazer guerra híbrida sob a Rússia, tal como ela faz conosco. Vamos ter de fazer coisas semelhantes, embora os russos possam estar mais preparados para a resposta”, defende Marco Serronha.