Todo exercício da palavra é uma linguagem do medo.

Julia Kristeva

A epígrafe de Mandíbula, terceiro romance de Mónica Ojeda e traduzido no Brasil por Silvia Massimini Felix, está nas entrelinhas de toda a obra da escritora equatoriana, que chegou ao país pela Autêntica Contemporânea em 2022 e acaba de lançar um novo título, Xamãs elétricos na festa do sol, também com tradução de Felix. Uma das vozes mais expressivas do que vem sendo chamado de novo gótico latino-americano, termo especialmente relacionado a escritoras da América do Sul, Ojeda mescla poesia, brutalidade, erotismo e misticismo andino em seu quarto romance, o segundo publicado por aqui.

A linguagem do medo, especialmente a do novo gótico latino-americano, passa por um boom editorial, comercial e acadêmico. No Brasil, além de Xamãs elétricos na festa do sol, pelo menos dois outros livros escritos por autoras latinas vinculadas ao insólito chegaram entre maio e julho às prateleiras do país. Um deles é Como nascem os fantasmas (Suma), romance da paulistana Verena Cavalcante; o outro é O bom mal (Fósforo, trad. de Livia Deorsola), nova coletânea de contos da argentina Samanta Schweblin. Mais do que coincidência editorial, os lançamentos reforçam um cenário que tem se afirmado nas últimas duas décadas, com vozes femininas a revisitar códigos de assombro a partir de experiências íntimas, corporais, políticas e sensoriais.

Essa estética se manifesta tanto no conteúdo quanto na forma literária. O insólito não é apenas a introdução do sobrenatural em ambientes realistas, mas uma perturbação contínua da ordem cotidiana. Nasce do estranhamento, da deformação do conhecido, da invasão do íntimo por forças sem explicação aparente.

O estilo se aproxima do lírico, do telúrico, do fragmentário e do poético sem abrir mão da brutalidade e do desconforto. São comuns histórias narradas em primeira pessoa, elipses, imagens de violação ou transfiguração para algo bizarro, claustrofobia e cenas de delírio. Nos enredos, o terror poucas vezes vem do susto ou da catarse, e sim da tensão acumulada e da deterioração de relações. Tudo isso, em maior ou menor medida, aparece nos três livros recém-lançados, mas também em obras já consideradas essenciais ao entendimento amplo desse cenário, como As coisas que perdemos no fogo, da argentina Mariana Enriquez, lançado na Argentina em 2016 e, por aqui, no ano seguinte pela Intrínseca com tradução de José Geraldo Couto.

O desenho desse mapa literário se dá em paralelo à reavaliação do papel das mulheres no próprio horror

O fenômeno não é restrito ao subcontinente. Embora na América do Sul as criações contenham peculiaridades locais, como a herança colonial, a opressão do Estado, o patriarcado e a repressão cristã, a movimentação de autoras do insólito aparece com singularidades próprias também na Ásia, com a japonesa Sayaka Murata, de Querida konbini (Estação Liberdade, trad. de Rita Kohl), e a sul-coreana Bora Chung, de Coelho maldito (Alfaguara, trad. de Hyo Jeong Sung); na África, com a nigeriana Nuzo Onoh, inédita no Brasil; e na Europa, com a espanhola Layla Martínez, de Cupim (Alfaguara, trad. de Joana Angélica d’Avila Melo), para citar algumas.

O desenho desse mapa literário se dá em paralelo a uma reavaliação do papel das mulheres na história do próprio horror. Se o cânone sempre reconheceu Ann Radcliffe, Mary Shelley e as irmãs Brontë como pioneiras do gótico, nomes como Shirley Jackson, Silvina Ocampo e Maria Firmina dos Reis vêm sendo, em momentos distintos, reavaliados dentro da historiografia do gênero, que por anos as deixou de fora.

Eco retumbante

Para Verena Cavalcante, que estreia no romance com Como nascem os fantasmas, esse apagamento sistemático tem sido enfim combatido no século 21. “As mulheres sempre dominaram os gêneros. E ninguém escreve horror como as mulheres”, diz. “Nós o experienciamos de maneira direta no nosso cotidiano, num corpo que verte sangue e é objetificado na violência de gênero, nas armadilhas de existir num mundo que hostiliza tudo que é feminino.”

No romance, Verena dá voz a uma protagonista pré-adolescente assombrada por ausências familiares e traumas que ela nem imagina ter e que se manifestam por aparições horripilantes. “O fantasma é o símbolo de algo invisível que perdura: o peso da ausência, da falta, um eco retumbante do passado, tanto dos temores quanto dos deslumbramentos”, diz a autora. Na escrita, Verena se assume influenciada por obras de terror psicológico com ecos do realismo fantástico e grotesco, citando Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst e Clarice Lispector, entre outras. A escritora diz ainda que o insólito opera como reflexo expressivo dos cenários sombrios que atravessam tanto o íntimo quanto o social. “É um excelente espelho da realidade, ainda que subvertida e calcada no grotesco, fazendo-a mais fácil de ser vista”, explica. Ela acredita que uma sociedade mais engajada e atenta ao que as mulheres têm a dizer oferece portas abertas aos leitores e a autoras que veem na escrita literária um espaço de “exteriorização das próprias subjetividades e das histórias de violência”.

Contra-ataque

Ficcionista, pesquisador e tradutor, o paulistano Oscar Nestarez fez um pós-doutorado na Espanha investigando a autoria de mulheres na literatura de horror. Ele identifica o momento atual como o de uma virada de percepção crítica e de mercado, em que uma nova sensibilidade estética tem se formado na produção latino-americana, destacando o protagonismo feminino e “uma abordagem do insólito que dá centralidade ao corpo, à ancestralidade, às heranças coloniais e à violência estruturante das sociedades locais”, escreve Nestarez num ensaio publicado na revista acadêmica Opiniães, da USP.

Na visão do pesquisador, obras de Mariana Enriquez, Mónica Ojeda e Samanta Schweblin conseguiram ocupar um lugar de relevância internacional sem renunciar a territórios simbólicos e geográficos e criaram uma estética própria, muitas vezes suja, carnal e não domesticada. “O choque visual explícito, a vilania, as monstruosidades, os símbolos, todo o imaginário pavoroso do gênero estava à disposição para que fosse apontado na direção de quem sempre tratou as mulheres com hostilidade”, me disse Nestarez durante uma conversa.

Para ele, o insólito escrito por mulheres representa um campo de contra-ataque simbólico. “Alguns livros são gestos de retomada do imaginário”, afirma. “As autoras não apenas reconstroem imagens, mas reelaboram códigos, expandem simbologias, criam linguagens e tensionam os modos de organização e recepção da literatura para responder à precariedade das estruturas por meio do excesso, do ruído e da contaminação.”

Perturbação

Especialista em construir cotidianos insólitos, Samanta Schweblin narra em O bom mal seis histórias marcadas por situações inesperadas que reconfiguram o caminho dos personagens. Os contos retratam pessoas comuns que, de repente, devem lidar com rupturas na percepção de seus mundos quase sempre sufocantes. O estilo evocativo e lentamente revelador da argentina remete ao da canadense Alice Munro, Nobel de Literatura em 2013, com o acréscimo da perturbação e de certo surrealismo já visto antes em outras coletâneas de Schweblin, especialmente Pássaros na boca, reeditada pela Fósforo em 2022 com tradução de Joca Reiners Terron. “O estranho é sempre mais verdadeiro”, diz a epígrafe de O bom mal, numa citação de Silvina Ocampo.

Para Mónica Ojeda, escrever é perturbar os sentidos e o medo é uma ‘emoção interessante’

Já em Xamãs elétricos na festa do sol, Mónica Ojeda radicaliza o estilo multivocal de Mandíbula. Na nova história, Noa e a amiga Nicole fogem da violência urbana de Guaiaquil rumo ao Ruído Solar, festival que atrai milhares de jovens com música, poesia, dança e espiritualidade. Lá, elas se deparam com uma paisagem lisérgica de vulcões em erupção e céus cortados por meteoritos.

Ao escrever, a autora equatoriana diz sentir que a perturbação é inseparável das transformações sensoriais que acompanham o processo de criação textual. “A escrita é um estado alterado de percepção. É uma paixão que vem de experiências no limiar do corpo e das linguagens. Para mim, o medo é uma emoção interessante, que nasce da ruptura com a realidade conhecida, e então o desconhecido dá lugar a uma nova linguagem, que é onde nasce a literatura”, disse à Quatro Cinco Um.

Ojeda aponta que o horror latino-americano não é exatamente novidade, mas a recepção talvez seja. “Sempre existiram escritoras do insólito aqui, que trabalharam com a imagética do horror. Penso em Armonía Somers, María Luisa Bombal, Elena Garro, Alejandra Pizarnik. A diferença é que já não se consideram esses livros ‘baixa literatura’ ou ‘menores’.”

A equatoriana cita ainda a boliviana Giovana Rivero, a mexicana Fernanda Melchor e sua compatriota María Fernanda Ampuero entre leituras constantes e observa que, embora compartilhem muita coisa, o estilo dessas escritoras apresenta grandes variações. “São propostas literárias muito diferentes entre si. Elas têm em comum um olhar agudo e crítico sobre a América Latina, sobre o corpo das mulheres, relações familiares e feridas históricas, mas suas escritas possuem camadas de sentido, estilos e olhares diversos.”

Reverberações

Referência da América Latina, já traduzida em vários continentes, Mariana Enriquez mistura terror social e pavor absoluto para transformar a miséria urbana, os traumas da ditadura e a marginalização excludente em sua matéria-prima. “No século 19, a explosão do gênero e do espectral na vida cotidiana também se relacionou com a política: o terror é um gênero popular que responde ao presente”, ela observa.
Enriquez reconhece a influência do cinema de horror dos anos 80, desde adapatações de Stephen King a filmes de matança como Sexta-feira 13, mas junta a essas referências o que detecta em seu entorno. “Quando escrevo e penso no cotidiano, simplesmente surgem os temas que me parecem adequados, literariamente falando”, explica a ficcionista e jornalista de 51 anos. “Não encontro o motivo literário para escrever horror, que é o meu gênero escolhido, com tropos clássicos relacionados ao gótico tradicional. Eu os amo, mas como escritora preciso atualizá-los, e isso me parece acontecer de forma natural.”

A escritora argentina Mariana Enriquez (Nora Lezano/Divulgação)

Com essa abordagem, seu romance Nossa parte de noite (Intrínseca, trad. de Elisa Menezes) foi uma das inspirações de Pecadores (2025), blockbuster de Ryan Coogler, e em junho a Netflix anunciou uma série adaptando contos da argentina. O momento parece, de fato, cada vez mais favorável à visibilidade do horror insólito pelo mundo, inclusive no Brasil. Verena Cavalcante aponta, entre suas conterrâneas brasileiras, Ana Paula Maia, Irka Barrios, Juliana Cunha, Isabor Quintiere, Larissa Prado, Paula Febbe e Cecília Garcia como exemplos da efervescência do gênero em português. “Partilhamos de um mesmo território devastado, das mesmas feridas abertas, de heranças autoritárias que até hoje perduram apegadas aos próprios fantasmas”, diz.

A frase da filósofa francesa Julia Kristeva que abre o romance Mandíbula, de Ojeda, poderia servir aqui também: Todo exercício da palavra é uma linguagem do medo. No Brasil, não nos falta medo — e uma literatura fértil produzida por mulheres vem dando algum sentido a ele.