Não existe segredo ou suspense em “Triste Tigre”, de Neige Sinno. A parte mais dura de se ler, a explícita, que corta o ar e faz as mãos suarem vem logo de cara.
Na obra, vencedora de prêmios como Femina e Goncourt des Lycéens, a autora francesa escreve sobre os estupros sequenciais que sofreu do padrasto, sua decisão de denunciá-lo ainda à época, o julgamento que se seguiu e sua própria vida pós-violência. A autora apresenta no livro na Flip nesta quinta, em palco às 12h com Anabela Mota Ribeiro.
Sem se preocupar em poupar quem lê, mas sim em escrutinar as entranhas do abuso sexual enquanto fenômeno psicossocial, o texto de Sinno alterna descrições quase gráficas e um esforço genuíno de compreensão.
A autora quer entender a Justiça e suas assimetrias em casos de crimes sexuais; a sociedade e seu perdão seletivo; o direito à ressocialização de quem comete tamanha brutalidade contra uma criança; a vergonha; o perfil da vítima, o que pensam as vítimas e, principalmente, o que pensam os algozes.
Com todas essas angústias passeando pelos seus relatos, Sinno desenrola uma colagem de memórias repleta de análises complexas sobre os aspectos psicológicos, sociológicos e legais que envolvem, alimentam e perpetuam a prática do estupro. Uma densa, mas não exagerada, dose de teoria subjaz ao texto, assim como as menções aos trabalhos de escritoras como Toni Morrison, Virginia Woolf e Virginie Despentes.
O título da obra é também uma referência literária, uma paráfrase de “Tigre, Tigre” de Margaux Fragoso, que mergulha no mesmo tema e, por sua vez, se inspira em um poema de William Blake.
O tigre é, para Sinno, o abusador em contraposição ao cordeiro, a vítima. E esse antropomorfismo intriga a autora, que —a partir de sua experiência familiar de abuso— passa a indagar se é possível, como questiona o poeta, que tigre e cordeiro sejam feitos do mesmo material.
Tudo a Ler
Embora escale todo um repertório de atrocidades ao redor do mundo para subsidiar suas reflexões, Neige Sinno nunca esquece de seu próprio lugar social, de uma mulher branca, francesa e pobre.
Busca informações na psicanálise, pensa a violência a partir de livros sobre a escravidão, o Holocausto, a guerra da Argélia, tece paralelos cuidadosos com as características dos traumas, a crueldade e manipulação, o lugar de poder do abusador e as cicatrizes que a violência imprime no corpo e no espírito desse “exército de sombras” —como ela vai chama o conjunto de quem passa pela experiência do abuso sexual.
Não ignorar seus próprios marcadores permite que ela estabeleça, de forma sensata e respeitosa, as diferentes proporções dos sofrimentos que relata —seja em primeira ou terceira pessoa.
O repertório analítico ainda busca paralelos com histórias de outras pessoas próximas ou noticiadas pelos jornais. Estas últimas, critica Sinno, pendulam entre alimentar o trauma coletivo da violação e relativizar os danos causados às vítimas, seja pela fetichização do ato, seja pela exaltação das histórias de superação das vítimas, quase sempre falaciosas, segundo a visão da autora.
No fim das contas, o mal-estar que a obra provoca não se restringe ao trauma do estupro que a autora sofreu em idade de alfabetização, mas se amplia ao fato de que ela nos envolve no trauma coletivo.
Sinno faz da sociedade inteira partícipe. E é uma participação perene, pois “quem foi vítima uma vez é sempre vítima e, principalmente, é vítima pra sempre”, afirma a autora —não sem se censurar depois pelo risco de generalizar as experiências de violência sexual.
Generalizando ou não, a experiência desta autora, hoje com 48 anos de idade, é bastante comum. Só em 2022 no Brasil, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados mais de 74 mil casos de estupro. Cerca de 61% das vítimas são crianças e adolescentes com até 13 anos de idade. Eis o nosso próprio “exército de sombras”.