Lina Bo Bardi / Preliminary Study – Practicable Sculptures for the Belvedere at Museu Arte Trianon, 1968. Credit line: Doação Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 2006. Cortesia de MASP.
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https://www.archdaily.com.br/br/1033562/feitos-para-brincar-a-ludicidade-nos-projetos-de-lina-bo-bardi-e-aldo-van-eyck
Aldo van Eyck e Lina Bo Bardi foram duas figuras subversivas. Suas visões de coletividade e ludicidade, mesmo aplicadas em estruturas muito distintas, tinham como principal ponto em comum uma ideia de arquitetura que vai além do desenho. Um espaço que se faz vivo pela apropriação, pelo movimento e pela troca. Dos playgrounds holandeses ao museu paulistano, os ideais dos arquitetos se entrelaçam, fortalecendo a ideia de uma arquitetura onde qualquer um se torna criança.
Aldo e Lina pertenciam à mesma geração — ele faleceu em 1999, aos 80 anos, e ela, no início daquela década, aos 77. Chegaram a se conhecer em vida: em 1969, quando o arquiteto holandês visitou São Paulo, foi recebido para um almoço na Casa de Vidro, residência de Lina. Nunca trabalharam juntos, mas o destino ainda lhes reservaria um encontro inesperado. Anos após a morte de Lina, Aldo se depara por acaso com uma exposição dedicada à arquiteta. A experiência o impacta a ponto de atravessar o Brasil para conhecer sua obra de perto. Desse reencontro — mesmo que póstumo — nasceram paralelos inevitáveis entre seus trabalhos, afinidades que até então permaneciam latentes. Essa trama de coincidências e diálogos silenciosos é o fio condutor de diversas pesquisas incluindo, principalmente, o livro Lina por Aldo: Afinidades no pensamento dos arquitetos Lina Bo Bardi e Aldo van Eyck, publicado em 2024.
Clássicos da Arquitetura: SESC Pompéia / Lina Bo Bardi © Pedro Kok
No entanto, as semelhanças entre Lina e Aldo não se revelam nas formas visuais de seus projetos, mas em algo mais profundo: uma arquitetura que se abre para as pessoas e que se completa na interação entre os habitantes da cidade. Nesse horizonte, o lúdico — em todas as suas manifestações — surge como linguagem comum, capaz de transformar espaços em lugares de encontro, movimento e descoberta.
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Todas as nações brincam, e brincam de forma notavelmente parecida – Johan Huizinga
Clássicos da Arquitetura: SESC Pompéia / Lina Bo Bardi © Flickr beatriz marques (CC BY-NC-ND)
Entre 1947 e 1978, contratado pela prefeitura de Amsterdã, Aldo van Eyck projetou cerca de 750 parques infantis. Mais do que lugares para brincar, esses espaços eram territórios de imaginação e, ao mesmo tempo, pontos de identidade em comunidades que buscavam se reconstruir após a Segunda Guerra Mundial. Sua rede de playgrounds funcionava como uma estratégia urbana silenciosa, mas poderosa, capaz de reverter o caráter rígido e funcionalista do Movimento Moderno e devolver às cidades algo essencial: a dimensão do encontro.
Aldo van Eyck defendia uma arquitetura a serviço da vida cotidiana e da interação social. Nos playgrounds de Amsterdã, criou um vocabulário simples — caixas de areia com borda de concreto, blocos arredondados, barras curvas, árvores e bancos — que, combinados de diferentes formas, se adaptavam a cada terreno disponível. Mais do que repetir fórmulas, sua estratégia era tática: ocupar vazios da cidade com estruturas temporárias que convidavam à apropriação. Ao apostar em elementos abstratos, em vez de equipamentos tradicionais como escorregadores e gangorras, Van Eyck estimulava também novas formas de brincar. As geometrias, para Aldo, eram coadjuvantes, porque a forma arquitetônica viria através da movimentação das crianças. Uma forma efêmera e reinventada a cada brincadeira.
Playground Aldo van Eyck. Ceescamel, CC BY-SA 4.0 , via Wikimedia Commons
Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, Lina elevava o MASP sobre pilotis, “devolvendo” o vão livre à cidade — gesto que o próprio Aldo destacaria ao visitar o museu. Pensado como espaço de encontro e socialização, a arquiteta chegou a incluir no projeto elementos lúdicos para crianças, lembrados por seu biógrafo Francesco Perrotta-Bosch, mas nunca construídos. Ainda assim, a ludicidade em Lina não se restringia ao universo infantil: manifestava-se na defesa de uma apropriação livre do espaço, sem usos pré-determinados, onde o inesperado sempre pudesse acontecer.
Essa intenção se revela de forma contundente nos projetos da arquiteta — não apenas no vão livre do MASP, mas também no Sesc Pompeia, com o espelho d’água e a lareira que evocam os elementos da água e do fogo, criando aconchego e convidando múltiplas apropriações. O mesmo acontece no Teatro Oficina, pensado como um espaço a ser vivido com o corpo: escalado, percorrido, descoberto. Segundo Marcelo Ferraz o projetar de Lina era “como o da criança que brinca de fazer cidades, de inventar mundos”. São formas entreabertas, “são vazios impregnados de possibilidades“, nos quais a grande escala acolhe os acontecimentos cotidianos, enquanto uma miríade de dispositivos de pequena escala desperta o afeto.
Clássicos da Arquitetura: Teatro Oficina / Lina Bo Bardi e Edson Elito © Nelson Kon
Todos esses gestos revelam, de forma quase palpável, o que Lina entendia como arquitetura. Nos anos 1980, em meio a uma conversa com estudantes no Sesc Pompeia, ela foi provocada a responder sobre qual seria, afinal, o papel da arquitetura. Sua resposta não veio em termos técnicos nem acadêmicos, mas em uma imagem cotidiana e profundamente humana: “arquitetura, para mim, é ver um velhinho ou uma criança com um prato cheio de comida atravessando elegantemente o espaço do nosso restaurante à procura de um lugar para se sentar, numa mesa coletiva.” É nessa cena simples — mas carregada de afeto — que Lina condensava sua visão de arquitetura. Francesco Perrotta-Bosch, no ensaio Uma fábula das duas escalas, do livro Lina por Aldo, retoma justamente esse olhar, reforçando a potência de uma definição que nasce da ação.
Clássicos da Arquitetura: MASP / Lina Bo Bardi © Pedro Kok
Um templo, um monumento, o Partenon ou uma igreja barroca existe em si por seu peso, sua estabilidade, suas proporções, volumes, espaços, mas até que o homem não entre no edifício, não suba os degraus, não possua o espaço numa ‘aventura humana’, a arquitetura não existe, é frio esquema não humanizado. – Lina Bo Bardi
Clássicos da Arquitetura: SESC Pompéia / Lina Bo Bardi © Pedro Kok
Nesse horizonte, fica claro como Lina e Aldo se afastam da figura do arquiteto demiurgo, que busca controlar formas e comportamentos de maneira absoluta. Em vez disso, ambos reivindicam uma arquitetura aberta, incompleta, que só se realiza plenamente na presença do outro — no gesto de brincar, no atravessar de um prato de comida, no corpo que escala, corre, descobre. É nesse espaço de liberdade e de imprevisibilidade que suas obras encontram afinidade: uma arquitetura menos como imposição e mais como convite, onde cada pessoa – independentemente da idade – pode se tornar autora do espaço.
Perante os cânones arquitetônicos do modernismo do século XX, Aldo van Eyck e Lina Bo Bardi foram dois subversivos, indisciplinados, insubmissos. Seus padrões em tudo se distanciavam do Modulor, o homem adulto de estatura média e proporções supostamente áureas. Em tantos projetos arquitetônicos, Aldo e Lina tiveram como parâmetros a altura do olhar mais próxima do chão, a audição mais rente aos passos, o tato ao alcance do solo: suas escalas humanas foram molecas e moleques […] prontos para divertidas revoluções a perturbar toda e qualquer ordem espacial. – Francesco Perrotta-Bosh
Este artigo é parte dos Temas do ArchDaily: Projetar espaços para crianças. Mensalmente, exploramos um tema em profundidade através de artigos, entrevistas, notícias e projetos de arquitetura. Convidamos você a conhecer mais sobre os temas do ArchDaily. E, como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossas leitoras e leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.