Albufeira – Histórias da nossa gente é o último livro de Ana Sofia Brito (colaboradora do 7MARGENS) com capa e ilustrações de Guilherme Limão, primo e cúmplice de muitas aventuras. E tudo começou numa conversa entre os dois sobre a memória e o seu papel nas gerações vindouras.
Ler Ana Sofia Brito é um prazer e um deleite que nos deixa um pouco mais esperançosos no meio de tanto desassossego que é a vida das suas personagens. E também a nossa.
Ana Sofia, como é seu timbre, sabe mostrar-nos o melhor que há na humanidade, apesar da dramaticidade da vida e de todos os defeitos, fragilidades e até brutalidade que cada uma das suas personagens transporta. Por isso nos deixa mais sossegados, mais esperançosos, porque existe sempre uma pequena luz de humanidade onde se vislumbra um outro futuro possível. Desinstala-nos, sossegando-nos.
Essa esperança na humanidade feita gratidão de quem se condói espelhada nas palavras de Zeferino Sem Tino: Ó menina, a dona Alexandrina vai morrer, eu agora estou triste, eu gosto da dona Alexandrina, ela dá-me pão e doce.” Ou a amargura de uma mãe que deixa um filho não evitado à porta de alguém: “Não se deixa os filhos à porta de qualquer uma. Vocês é que pensam todos que a gente não sabe o que faz, que somos burras, bichos sem sentimentos”.
Pouco importa, tal como escreve Ana Sofia na introdução, se as histórias correspondem à realidade dos factos ou se na memória outros pontos se acrescentaram, já que é nesses pequenos acrescentos que se faz poesia à medida de cada uma das personagens. Pouco importa, porque Albufeira e as suas gentes estão lá como imagens de um espelho devolvidas ao presente ou ao futuro daqueles e daquelas que um dia pisarão o mesmo chão, mas não os mesmos lugares. Os lugares desaparecem, mas a memória permanece para além do tempo que foi o seu. Não será difícil a quem lê estas histórias sentir-se próximo de algumas delas, mesmo sendo de lugares diferentes. Elas são também o espelho de um tempo e de um país que corria atrás de um futuro que teimava em escapar-lhe. “(…) os desgostos não têm de ser um fado eterno, que as alegrias também sabem ressuscitar até das mais profundas descrenças”. Era um tempo de “grandes fomes”, talvez também de desesperança, mas também de muita esperança revelada nas mais pequenas vivências do quotidiano.

As histórias transportam-nos para uma Albufeira de outros tempos, memórias de gente tecidas na desgraça e na pobreza, de um futuro que não ia além da soleira da porta. Mas esse também era um tempo em que a solidariedade conseguia colar os cacos da vida e lhe restituir de novo a dignidade necessária. Através das histórias embrenhamo-nos nas vidas daquelas gentes – característica da escrita de Ana Sofia – e vamos acompanhando as pequenas mudanças na vila: o mundo fabril, as mães solteiras enxotadas e obrigadas a esconderem-se das más-línguas e dos olhos alheios, os equívocos da guerra e os casamentos por procuração, a chegada dos primeiros estrangeiros, aparecimento das discotecas como lugar de encontro em detrimento dos cafés e das tascas, toxicodependência, emigração, o cinema como lugar de todos os sonhos, o risco de amores proibidos … E o mar ali ao lado, águas de sustento e de tantas tormentas, homens de devoção, porque sabem que a vida é uma doação da qual devem estar gratos: “Se há coisa que não falta nem pode faltar aos homens do mar é a verdadeira devoção; bem sabemos que no mundo das tormentas não há aliados como as divindades, que a solidão é coisa de avivar os medos quando a vida está em perigo”.
Novos tempos, novas gentes, novos hábitos e tudo foi mudando:
“O Sangria mudou, o Bodega mudou, o Valter mudou. Eu também devo ter mudado.”
As histórias curtas mostram a capacidade da autora em nos mostrar o essencial sem se perder em pormenores para lá do necessário ou receio em ignorar outros. O essencial está lá e o resto adivinha-se! Arrisco dizer que numa prova literária cega seria fácil identificar a autora destas histórias. E quando assim é, significa que ela se vai construindo como autora e descobrindo a sua própria identidade.
Avisadas as palavras de Jorge Girino, homem do mar, onde cabem todas as solidões, mas onde a esperança se esconde na própria morte, porque intensa:
“Que quanto mais se vive, mais intensamente depois se morre. Que quanto mais se conhece, mais sozinhos nos deixam. E quanto mais lugares percorremos, mais longe ficamos de tudo.”
Finalmente, dizer-vos que gostei das ilustrações do Guilherme Limão, desde a capa passando pelas ilustrações no canto superior, funcionando quase como um antetítulo gráfico. Encantou-me a forma como numa simples e reduzida ilustração conseguiu transmitir-nos o essencial da história. Artista albufeirense, com alguns prémios, teria merecido, mesmo se brevíssima, a sua apresentação biográfica.
Albufeira – Histórias da Nossa Gente
Ana Sofia Brito
Ilustrações de Guilherme Limão
Editora “On y va”
112 pgs.
14 €