Tudo começou ao abrir “Trincheira Tropical”, de Ruy Castro, lançado pela Tinta-da-China, e encontrar a descrição de como nasceu o movimento integralista no Brasil. O livro vai muito mais longe – com epicentro no Rio de Janeiro, conta como foi no país vivida a Segunda Guerra Mundial, quem foram os seus heróis e vítimas, quem ‘ganhou’ e quem perdeu. Que tipo de questões o conflito europeu inoculou na sociedade brasileira, e como 25 mil jovens da Força Expedicionária acabaram a combater na frente italiana. Mas, dizia, graças à mestria do autor, logo as primeiras páginas mostram a história do Brasil a pulsar ao ritmo do que no resto do mundo se gerava, a dançar pelo mesmo batuque de um homem só, recebido em 1931 por Mussolini no Palazzo de Venezia, que cumprimentava estendendo o braço direito na posição vertical, “exclamando ‘Anauê’”.

Era a extrema-direita brasileira, que para se distinguir envergava camisas e blusas verdes, e que “empolgou” personalidades muito importantes do Rio e de São Paulo, advogados, economistas, poetas – entre os quais o próprio Vinícius de Moraes -, atores e atrizes, escritores, gramáticos, jornalistas, sociólogos, médicos, professores, diplomatas, arquitetos, empresários. Entre 1933 e 1937, publicaram-se mais de 50 livros sobre o integralismo. Por essa altura, os “Protocolos dos Sábios de Sião” tiveram edição brasileira, vendendo 18 mil exemplares em dois meses “e tendo contínuas reimpressões”.

“O aparato das passeatas do integralismo, com as multidões fardadas e coreografadas, a floresta de estandartes, bandeiras e faixas, as agressivas palavras de ordem e a marcha militarizada (…) reproduzia o modelo nazista. O mesmo quando à estratégia de propaganda, decalcada na de Hitler e Mussolini. Pela primeira vez no Brasil, um movimento usou o rádio, o cinema, livros, discos, fotografia, imprensa, anúncios, cartazes, flâmulas, voltantes e ‘santinhos’ na agitação política”, escreve Ruy Castro, que ressalva como, de início, não eram levados a sério, congregando na primeira passeata – na avenida Paulista, em 1932 – apenas uns 40 homens. Há que temer os começos.

Mas não os dos livros, como este em que a autora e investigadora finlandesa Iida Turpeinen nos diz: “Todas as expedições começam com uma chávena de chá.” Intitulado “A Existência de Vida”, o romance é o primeiro da autora, traduzido por cá pela Livros do Brasil. Finalista do Prémio Strega Europeu e do Prémio de Melhor Romance Estrangeiro em França, aborda a história, em 1700, da expedição ‘fracassada’ de Vitus Bering que pretendia encontrar uma rota marítima da Ásia para América e o matou na tentativa, mas levou à descoberta de um mamífero marinho desconhecido pelo naturalista a bordo, o brilhante Georg Steller. A história desdobra-se em três tempos, avançando para a procura, em 1859, do esqueleto daquele animal, e para o restauro deste no Museu Finlandês de História Natural.

Quase tudo se resume à velha contenda entre predadores e presas, e o humano está sempre entre os primeiros. Uma frase: “Foi assim que Deus quis, criou a Terra e as suas criaturas para que estas fossem dominadas pelo homem.” Outra frase: “A expedição de Bering massacra uma quarentena de vacas-marinhas. Desses animais mortos, um quinto será consumido, entre cinco a oito animais, e o resto lançado às ondas. Depois, o homem abandona a ilha.” Iida Turpeinen trata ambos – homens e animais – com a mesma compaixão. Como se uma lei irrevogável os guiasse. Os seus genes circulam nas gerações seguintes, e mesmo as vacas-marinhas de Steller, cujas ossadas perduram intactas num museu graças ao esforço de alguns humanos com memória, têm familiares que ainda lutam por não se extinguir.

“O meu país é só meu. Dele me vêm as alegrias, os eventos e motivos da minha fé nele, meu país da luz e da vitória sobre o tempo da tristeza antiga de que nos libertámos em 1974: a ditadura, o colonialismo, a injustiça social de um regime que nós combatemos, pelo menos em espírito e em esperança, no seio deste povo de que somos filhos”, vemo-lo a escrever uma terça-feira, 14 de fevereiro de 2017, antes de comentar os “comentadores de tudo” e que tudo sabem, depois dizer que não, que não está triste, mas sim resignado. Falamos de “Novas Fases da Lua”, de João de Melo, que saiu pela D. Quixote, diário pessoal entre aquele ano e 2024.

O autor de “Gente Feliz com Lágrimas” disseca o mundo – o terror no Médio Oriente, a guerra russo-ucraniana –, o encerro da pandemia, os alertas do planeta, a escrita. “Já o disseram outros antes de mim, mas não deixo de o repetir: ser escritor e viver da escrita nesta terra prometida, só por ilusão ou por desatino. Quem compra os livros, quem os lê? Que tipo de obras se vendem, hoje, nas livrarias?”. Em janeiro de 2023, estas eram as perguntas. Em novembro de 2024, não mudaram assim tanto: “Que tenho a propor a quem me lê? Sermões, lavagens da mente, exercícios de estilo, autojustificação do escritor? Oxalá o mundo ouvisse o meu silêncio. E mo aceitasse como um modo de falar à consciência do nosso tempo.”

Não só aceitamos, como agradecemos.

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“Setembro Negro”, de Sandro Veronesi (Quetzal)

Do autor de “Colibri”, nascido em Florença, um romance com esta primeira frase: “Para poder começar a contar-vos esta história tenho de falar dos meus pais. Naquela época eram os guardiões da minha serenidade e isto quer dizer que eram ambos bons pais.”

“Gaspar Ruiz e um par de outros histórias”, de Joseph Conrad (Minotauro)

Três novelas do primeiro Conrad, a que dá o título ao livro publicada em 1906, seguida de “O Delator”, do mesmo ano, e de “Os Idiotas”, ainda anterior, de 1896.

“Make Sequóias Great Again”, de António Cabrita (The Poets and Dragons Society)

Contos sobre o nosso tempo de um escritor português prolífico, com o devido tom sarcástico já esboçado no subtítulo – ‘Crónicas da Era Trump’.

NÃO-FICÇÃO

“Uma História da Filosofia”, de Luc Ferry (Guerra & Paz)

“A filosofia é a melhor e principal chave para compreender a realidade, e penso que, se dedicar algum tempo a este livro, também compreenderá porquê”, diz-nos o filósofo francês, doutorado em ciência política.

“A Rota do Ouro”, de William Dalrymple (D. Quixote)

Salman Rushdie comentou que este compêndio é uma “raridade”: e é. A Índia antiga transformou mesmo o mundo e o livro, brilhantemente escrito, explica de que modo.

“Conversas sobre Deus – Um Diálogo com Simone Weil”, de Byung-Chul Han (Relógio D’Água)

Um ensaio do filósofo sul-coreano sobre o pensamento de Simone Weil. Lemos no Prefácio: “Há algum tempo, Simone Weil introduziu-se em mim. Instalou-se na minha alma. Agora, continua a viver e a falar dentro de mim. Iniciei uma conversa íntima e ardente com ela.”