“Alguns silêncios são de uma eloquência ensurdecedora”, disse-me Miguel Falabella certa vez ao explicar sutilezas que os autores deveriam praticar ao escrever roteiros. Nenhum silêncio, no entanto, tem sido mais ensurdecedor que o da protagonista Raquel, da novela “Vale Tudo”, interpretada pela atriz Taís Araújo.
Reduzida a mera coadjuvante de luxo no remake de Manuela Dias, a personagem motor da trama criada por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Básseres em 1988 perdeu totalmente relevância na história, ao que parece, após dar uma entrevista declarando estar insatisfeita com o destino de sua personagem, que voltaria a ficar pobre. Isso, para a atriz e para muito telespectadores, seria uma romantização do mito da meritocracia na televisão brasileira.
Questionada por uma repórter se havia ouvido as críticas de sua protagonista, Dias resumiu a história toda a um cínico: “Novela é colaboração, né? É isso…”
Se novela é colaboração, talvez a autora devesse ter deixado a picuinha de lado e mantido a essência não apenas da personagem, mas da história criada em 1988 para discutir uma questão ainda muito atual: “Vale a pena ser honesto no Brasil?” Não que isso pareça importar muito para a TV Globo em seu aniversário de 60 anos.
Enquanto a “Vale Tudo” de 1988 tinha como tema central a crônica sociopolítica de um Brasil em crise econômica e moral, em 2025 o mantra parece ser: para minimizar custos, maximizar lucros e gerar cortes e cliques nas redes vale tudo, inclusive uma narrativa desconexa, personagens mal construídas, cenas mal dirigidas e a banalização do debate social. Ah, e claro, publicidade em todo espaço possível, até com um personagem morrendo de câncer.
A trama de 1988 era contundente, tensa, catártica; a “Vale Tudo” atual é uma novela solar, colorida, com trilha sonora que nos faz sentir como se estivéssemos num quadro de saúde bucal do Encontro com Patrícia Poeta.
No entanto, das banalizações, a pior é a da protagonista. Quando digo que Raquel é o motor da trama, é por essa característica tão peculiar da personagem: ser —ou pelo menos se esforçar— para ser incorruptível. Além disso, Raquel é baseada no tio de Gilberto Braga, ex-fiscal da Receita Federal que se recusava a aceitar propina e cuja história real inspirou o autor a escrever a novela. A novela é sobre uma pessoa honesta sobrevivendo em um ambiente de desonestidade.
Uma oposição direta a sua filha, Maria de Fátima, que acha que para subir na vida vale tudo. Ao matar esse dualismo, a autora mata o mote da novela. E para os que dizem que não existe gente totalmente honesta, Beatriz Segall, a Odete Roitman original, em entrevista à Folha, foi categórica: “Ser honesto é uma questão de caráter!”
Manuela Dias deixou muito claro que para ela ninguém, nem Raquel, é incorruptível. Ela já mentiu para ajudar Fátima a casar com Afonso, mentiu sobre sua sociedade com Celina, e roubou um punhado de dólares desviados por Marco Aurélio para investir em seu restaurante na Hípica e nunca devolveu (diferente da personagem de 1988). Acredito que a única maneira de salvar seu protagonismo e o conflito central da novela seria fazendo a cozinheira por fim cumprir a profecia de seu pai e ser a assassina de Odete Roitman.
Seria não apenas original, mas iria totalmente ao encontro da visão da autora, que no lançamento da novela dizia que já ficou cafona esse negócio de falar mal do Brasil.
Também ficou cafona esse negócio de mocinha passiva e de vilã forjando a própria morte e terminando rica bebendo champanhe com algum boy magia. Seria um excelente desfecho fazer a heroína se tornar uma vingadora acabando com a vilã —e saindo incólume.
Maratonar
Melhor ainda se Raquel desse um jeito de por a culpa na falsa fofa da tia Celina, que sempre se colocou como boazinha, mas que durante a trama sempre demonstrou seu classismo mal disfarçado.
Na minha versão final de “Vale Tudo”, Raquel sai atrás de Fátima e mata Odete para impedir que a filha se torne uma assassina. Raquel poderia, por exemplo, entrar no hotel sem ser percebida, e na suíte de Odete, disfarçada de arrumadeira —ironizando a cena de racismo protagonizada por ela quando Odete sugeriu que gente de sua cor não entrava no Copacabana Palace pela porta da frente.
O tiro poderia até ser por acidente, usando a arma de Celina. Enfim livres das irmãs tóxicas, os herdeiros Roitman finalmente teriam que se virar sozinhos e talvez crescessem de uma vez por todas.
A trama tiraria Raquel do papel de vítima, de heroína passiva e atualizaria o dilema de Fátima e Raquel para o contexto atual. Raquel é obrigada a admitir que a filha tinha razão —ser honesto nesse país não vale a pena, e justiça só existe aquela que se pratica. Talvez não seja a mensagem que o establishment queira ver, mas é a que a audiência gostaria de ouvir.
Ao mesmo tempo, Raquel mantém sua essência de mãe leoa, o que, por sua vez, causa uma transformação profunda em Fátima. Tomada por uma crise de consciência pela linha moral que fez sua mãe atravessar, a alpinista social decide se modificar e se torna o braço direito de Raquel na Paladar.
Agora, digamos que Odete tenha armado sua morte e escape viva. Ainda assim, ela podia acabar nas mãos de Raquel que, digamos, esteja viajando para o exterior com Ivan, em lua de mel e, em uma cena “pós-créditos”, descobre por acaso a armação final da vilã e decide que alguém precisa por um freio em Odete.
Esse final menos moralista, mas redentor da mocinha, também seria épico. Raquel usa do mesmo artifício —se disfarça de camareira e serve um canapé de maionese envenenada para Odete. Enquanto a vilã estrebucha, usa a frase fascista da vilã contra ela mesma: “Você tinha razão: gente que come maionese não faz falta no mundo.”
Talvez seja muito otimismo de minha parte achar que essa novela e esse roteiro tenham alguma redenção. Para que isso acontecesse, seria necessário que as pessoas envolvidas na produção de “Vale Tudo” conseguissem se olhar no espelho social da novela e enxergar o racismo estrutural eloquente nesse silenciamento de Raquel e consequentemente de Taís Araújo.
Vai ser difícil, afinal de contas, financeiramente a novela é um sucesso. Mas já que a lógica é a do dinheiro, talvez eu como consumidor só esteja querendo mesmo exigir um produto à altura das 175 horas e dos R$ 500 de investimento em Globoplay que fiz quando me dispus a assistir essa novela.