Uma obra que transforma em poesia vivências e as lutas de uma cultura que resiste em meio à invisibilidade dos territórios urbanos. No livro Na Lente do Viageiro, do poeta e cronista Francisco das Chagas Torres, indígena do povo Tremembé, o autor dá voz, em versos, à memória e à resistência de seu povo, que ainda luta pela retomada de seu espaço em contexto urbano.

A publicação é o primeiro trabalho impresso da Editora Social Casa d’Arte, criada em 2024 para apoiar autores e projetos editoriais com viés colaborativo. A obra foi lançada no mês de julho, no município maranhense de Raposa. A obra marca estreia da nova editora e dá voz à luta do povo indígena Tremembé pela retomada do território em contexto urbano no Maranhão.

“Se não fosse a Casa d’Arte, eu não seria oficialmente escritor hoje”, afirmou Francisco durante a entrevista ao programa Dedo de Prosa, da Agência Tambor, realizada na quarta-feira (30). O poeta relembrou que a vontade de escrever surgiu ainda na infância e que seus versos refletem o que viu e viveu: “tudo que eu escrevi eu ouvi ou vi”. A obra é dividida em dois blocos: Ferrões sem pontas, de teor mais crítico e social, e outro voltado a sentimentos como saudade e amor.

Segundo Luzenice Macedo, coordenadora da Casa d’Arte, que também participou da entrevista, a Editora Social nasceu do desejo de criar uma cadeia solidária para viabilizar a publicação de livros impressos que não se alinham à lógica comercial. “A gente entende que viabilizar livros é protagonizar falas muitas vezes emudecidas.

A escolha de abrir a editora com o livro do seu Torres é um ato político”, explicou. Ela destacou ainda que a iniciativa conta com o apoio do Instituto Maranhão Sustentável e da gráfica Sete Cores, que oferece condições especiais para viabilizar as publicações.

[Assista a entrevista completa com Francisco das Chagas Torres e Luzenice Macedo ao final desta matéria.]

Na Lente do Viageiro é uma expressão poética de pertencimento e denúncia. A luta do povo Tremembé pela demarcação de suas terras aparece no poema “Sem Amarras”, que abre o livro e afirma: “a luta maior é por reparação de itens que somos signatários, pois a história via contramão esquece que somos originários”. Francisco relembra que os Tremembé chegaram a Raposa em 1959, vindos a pé do Ceará, e que ainda enfrentam discriminação por não viverem em aldeias tradicionais.

Francisco das Chagas Torres, indígena do povo Tremembé, autor do livro Na Lente do Viageiro

A escolha pelo livro impresso, em tempos de domínio do digital, também foi tema da conversa. “O livro impresso tem mais encanto. Eu durmo com ele, levo para onde quiser. O virtual é mais difícil, ainda mais para a nossa geração”, comentou Francisco. Para Luzenice, o impresso possibilita uma experiência sensorial que ainda é fundamental, sobretudo para públicos que não têm familiaridade com as tecnologias.

O processo de produção da obra foi construído coletivamente, com envolvimento de profissionais voluntários na edição, revisão, diagramação, capa e comunicação. “Publicar é caro, complexo, mas quando a gente atua em rede, é possível”, ressaltou Luzenice. A editora também rompe com modelos tradicionais ao garantir que os direitos autorais permaneçam com os escritores e que os projetos sejam geridos de forma justa e transparente.

A repercussão do lançamento extrapola os limites do município de Raposa. “As pessoas não associam Raposa a território indígena, muito menos a um território criativo. Mas aqui há indígenas, há poesia e há luta”, afirmou Luzenice. Para o professor Ed Wilson, que participou da entrevista, a iniciativa ajuda a desconstruir o senso comum que marginaliza indígenas urbanos: “A memória é um espaço de disputa, e o livro é uma ferramenta para confrontar a história editada”.

O livro está à venda por R$ 50. Os exemplares podem ser adquiridos diretamente com o autor ou pelas redes sociais da Casa d’Arte. O próximo lançamento está marcado para o dia 9 de agosto, na casa de Francisco, em Raposa, e outros eventos estão previstos em São Luís e cidades vizinhas.

[Assista a entrevista completa com Francisco das Chagas Torres e Luzenice Macedo no canal da Agência Tambor.]