No quarto romance (terceiro publicado em Portugal, sempre pela Tinta-da-China), a brasileira Giovana Madalosso, inspirada pelos problemas cardíacos que a filha enfrentou, conta a história de Maria João, uma jornalista que cai inanimada durante uma tentativa de violação e descobre ter uma arritmia, vendo-se a partir desse momento obrigada a procurar uma vida privada de emoções fortes até que o problema esteja resolvido ou, pelo menos, corretamente diagnosticado e medicado.

Maria João procurará assim abrigar-se do mundo feroz, voltando à aldeia pacata onde crescera e onde reencontrará Sara, uma amiga de infância cujo filho, Nico, tem um linfoma.

A necessidade de calma e serenidade imposta por um coração defeituoso é, em certa medida, o núcleo da história, merecendo por isso ser analisada de um ponto de vista narrativo. Após o episódio traumático em que se descobre cardíaca (quer no sentido clínico quer no sentido etimológico de provida de um coração, visto que até aí o coração da protagonista só lhe merecera considerações romântico-poéticas, como acontece com todos nós, pessoas saudáveis), Maria João compreenderá a impossibilidade de decretarmos o abrandamento da vida, uma vez que a vida não é estancável. Não é possível, como tantas vezes Maria João tenta fazer, envolver o mundo em plástico-bolha para que este não nos fira e não se parta. Por mais que nos escondamos, não podemos antecipar nem condicionar o impacto emocional das experiências que o dia nos reserva, tal como não podemos compartimentar as experiências em blocos estanques, como Maria João tão bem nos explica:

Eu não era uma ajudante de mágico que pode se deitar num caixote e ser serrada em fragmentos (…) Os meus olhos e ouvidos estão ligados à minha mente que está ligada ao meu coração que está ligado a essa coisa que não sei qual é que detona as emoções” (p. 32).

No entanto, se a arritmia serve como mecanismo literário no sentido em que torna estranho o que tomávamos por garantido, é-o também na medida em que o distanciamento em relação ao mundo, ao erguer uma parede entre Maria João e os outros (e, aliás, entre ela e a própria família) concede-lhe, enfim, um olhar novo, desprovido da linguagem comum que nos cega em relação ao milagre. Aliás, deste ponto de vista, não será decerto coincidência que a arritmia aproxime Maria João precisamente da literatura, visto ser esta a única manifestação artística que provoca nela, bem como na maioria de nós, uma comoção moderada e racionalizada, ao contrário, por exemplo, da música e do cinema, que geram, nas palavras da protagonista, um “sofrer gostoso”. Nesse sentido, não será também uma coincidência vermos Nico a explicar que o seu interesse pela literatura nasce, lá está, de uma exclusão, por sua vez gerada pela doença:

Só sei isso porque leio muito, ele falou. E depois, baixando os olhos: E só leio muito porque ninguém quer brincar comigo” (p.141).

Título: “Batida Só”
Autor: Giovana Madalosso
Editora: Tinta-da-China
Páginas: 240

Contudo, se Giovana Madalosso trata com mestria o núcleo da história, a coisa não muda de figura quando prestamos atenção às suas periferias, cujos habitantes são invariavelmente descritos com enorme minúcia e destreza, parecendo sempre que tudo deriva de um qualquer impulso original: o ex-namorado ciumento (cujo ciúme, como Maria João bem explica, deriva do seu privilégio) que queria ser Hamlet e que acaba como protagonista de anúncios de uma companhia telefónica, a repetir grotescamente o monólogo mais desejado — ser ou não ser cliente Max, eis a questão; o interesse de Maria João pelo jornalismo, incitado por uma mãe mitómana e pela necessidade de encontrar um porto seguro onde se abrigar das fake news domésticas; o filho do vocalista de uma banda de tributo aos Bon Jovi do interior do Brasil que foi abandonado pelo pai e quer agora ser cantor lírico.

Além de tudo isto, a doença traz consigo — e será esse o aspeto mais interessante do livro — simultaneamente uma compreensão da fragilidade da protagonista, um questionamento da sua fé, uma consciência da insuficiência da posição que ocupa e, sobretudo, uma descoberta do amor à vida que Maria João traz dentro de si, amor esse que é irracional e indomável, que não depende de uma avaliação fria das eventuais virtudes pessoais e profissionais de Maria João, mas antes de algo, por assim, dizer, prévio e superior a tudo isso (“Só olhei para o alto, pensando que dentro de mim também havia uma galáxia da qual eu conhecia apenas uma minúscula parte”). E é ótimo que assim seja, uma vez que a literatura não serve, ou pelo menos não deveria servir, para validar as nossas perspetivas em relação ao mundo mas sim precisamente para o contrário: para as instabilizar, questionar e colocar em evidente contradição, tornando-as, no fundo, incompreensíveis.

Por fim, como qualquer excelente romance, todas estas virtudes de Batida Só assentam e dependem tanto da robustez das personagens (e Nico e Sara são personagens espantosas) como do virtuosismo literário de Giovana Madalosso, que se torna sobretudo evidente quando a escritora escreve acerca de sexo, o tema que qualquer leitor minimamente experimentado saberá ser um desafio tremendo, perante o qual já tantos extraordinários escritores colapsaram tremendamente. Ora, Madalosso, talvez por ser herdeira de uma tradição literária brasileira nesse aspeto bem mais admirável do que a portuguesa, escreve sobre tudo isso com uma leveza que não deixa de espantar. Senão, vejamos a cena em que, nervosa perante o medo da morte, mas desesperada perante a pulsão da vida, Maria João decide fazer sexo com um homem pelo qual deliberadamente não se sente atraída:

“Sentei em cima dele, querendo ficar no controlo, porque estava com medo de que o orgasmo escapasse como das outras vezes, de que criássemos cabelos brancos e rugas antes de chegar ao fim. Além disso, queria ditar o ritmo, o mais lento possível (…) Você não se mexe. Ele assentiu. Percebi que eu também não precisava de me mexer. Nunca imaginei que a gratidão pudesse deixar uma mulher tão molhada. Olhar para aquela mão segurando o meu pulso, para aquela boca que se mordia para controlar o corpo estático, dispensou qualquer esforço visível. Quem nos olhasse de fora, pensaria que éramos duas estátuas — Vênus cavalgando Davi com punho alado — mas dentro de mim acontecia tanto” (p.120).