Chegou a Lisboa apenas com o passaporte na mão e o pijama da prisão vestido. Foi detida no deserto israelita, após a interceção da flotilha humanitária que levava ajuda para Gaza. Um mês no mar, drones a sobrevoar o barco “todas as noites”, e depois dias de cativeiro em condições “desumanas”. Sofia Aparício regressou a Portugal sem medo nem arrependimento, mas com uma revolta clara: a forma como o Estado português tratou o seu caso
Uma semana depois de voltar a Portugal, Sofia Aparício confessa, em entrevista exclusiva à CNN Portugal, que ainda acorda sobressaltada, com a sensação de que os guardas estão a entrar na sua cela de madrugada, com cães e armas apontadas. “Já me aconteceu quatro ou cinco vezes esta semana. Não sabia que tinha sido tão traumático.“
Dias depois do regresso, ligaram-lhe do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ficou a saber que os quatro ativistas teriam de pagar ao Estado o custo do voo de repatriamento. No entanto, ainda não recebeu qualquer notificação de valores.
“Se isso é um procedimento normal eu pago, eu sou de boas contas, não devo nada ao Estado. Enviavam a notificação e nós pagavamos. Mas muito pouco tempo depois de eu receber aquele telefonema, vejo na televisão, em letras gordas: ‘os quatro ativistas vão ser obrigados a pagar ao Estado’. Achei tão rasteiro. Sei que não era para me atingir a mim, nem ao Miguel, nem ao Duarte. E confesso que esta forma de fazer política, de baixar o nível ao máximo, enoja-me.”
Para Sofia Aparício, o Governo português falhou no essencial: proteger cidadãos que foram, nas suas palavras, “sequestrados” por Israel.
“Eu não fui para Israel de livre vontade. O meu destino era Gaza. Fui levada contra a minha vontade pelas forças terroristas de Israel. Eles cometeram dois crimes: sequestro e interceção de embarcações em águas internacionais. O mínimo, nem que fosse um gesto simbólico, era o nosso Governo mandar a conta para Israel.” E acrescenta: “Quando o ministro dos Negócios Estrangeiros diz que os israelitas foram ‘muito profissionais’, está a dizer que os criminosos foram profissionais a cometer crimes. Eu não consigo compreender isto.”
Para a ativista, os direitos humanos “não têm cor política, não são negociáveis, e não têm fronteiras”. E recorda as declarações de Francisco Rodrigues dos Santos para intensificar as críticas ao executivo liderado por Luís Montenegro. “O antigo líder do CDS deu uma lição de dignidade a todos estes políticos que estão agora no poder. A minha mãe diria que ‘isto sim é um bom cristão’.
“Deram-nos comida estragada, ficámos sem água, negaram medicação a doentes crónicos”
Nos cinco dias em que esteve detida, dormia com mais quinze mulheres num espaço onde “cabiam oito”. O calor era “insuportável”. “A farda era de tecido polar. Estávamos no deserto. Quando finalmente me deixaram sair, obrigaram-me a vestir o polar e meteram-me numa jaula ao sol.”
“Deram-nos comida estragada, ficámos sem água durante dias, negaram medicação a doentes crónicos. Uma senhora que estava na minha cela de 70 anos tinha a perna enfaixada e a guarda perguntou-lhe o que tinha. Quando ela diz ‘ a perna partida’, a guarda manda-lhe com a porta de ferro da nossa cela contra a perna”, continua.
No entanto, e mesmo nas piores horas, conta, havia algo que a impedia de ceder ao desespero: “Saber que o que estávamos a viver não se comparava ao sofrimento dos palestinianos. Isto para mim são coisas que vão ser difíceis de esquecer, mas não é nada comparado com o que os prisioneiros palestinianos passam nas prisões israelitas nem com o que o povo palestiniano tem passado às mãos de Israel. Sou uma privilegiada. Quando entrei em casa nunca achei a minha casa tão bonita. Senti realmente o privilégio de ter uma casa para voltar, coisa que os palestinianos não têm”.
“Podem dizer o que quiserem. Eu sei o que fui fazer”
Questionada sobre o cessar-fogo recentemente acordado entre Israel e o Hamas, Sofia Aparício confessa ter uma “esperança muito cuidadosa”. “ Li-o e pareceu-me que tínhamos recuado não sei quantos séculos e estava a ver impérios colonialistas a decidir o destino de um território que não lhes pertence. Mas, apesar de tudo, temos de celebrar o fim dos bombardeamentos. O povo palestiniano merece o fim desta violência e um caminho para a paz duradoura.” E acrescenta: “Só haverá paz verdadeira quando o povo palestiniano tiver autodeterminação num território livre de ocupação e de limpeza étnica.”
A flotilha nunca chegou a Gaza, mas, para Sofia Aparício, a derrota logística não apagou o sentido da ação. “Vi coisas que me restauraram a esperança na humanidade: pessoas altruístas, resilientes, dispostas a arriscar tudo por um povo que está a ser exterminado. Eu não tinha muita esperança na humanidade, e acho que voltei com mais um bocadinho.”
Apesar das críticas e do ódio que recebeu nas redes sociais, a atriz diz não se deixar atingir: “Podem dizer o que quiserem. Eu sei o que fui fazer. Eu não consigo viver comigo se não fizer nada. Se tivesse ficado no sofá a ver um genocídio – ainda por cima este, que nos passa nas redes sociais, na televisão diariamente – nunca mais dormia com a consciência tranquila.”