Uma quadra sobre uma cidade que se escreve assim, ó:

“entre,
entre por favor
entre blocos
entre quadras
entre,
entre por favor”

— já antecipa que o seu código-postal é a solidão, a sua região administrativa o desamparo e que a sua gente se liga nas desconexões de uma terra pensada como marco arquitetónico. Fala-se de Brasília, causa (e “causo”) dos versos de Nicola Behr (um trovador do Cerrado) no livro Poesília (2010), que cobre muitos dos sentimentos retratados em Pequenas Criaturas, um filme de aflição que, pouco a pouco, desce encostas até ao aconchego. O Distrito Federal, território do Centro-Oeste do Brasil onde, desde o início dos anos 60, passou a operar a capital republicana, é espaço — e personagem — do sufocante exercício de (auto)geografia de Anne Pinheiro Guimarães, que encerrou a seleção competitiva do Festival do Rio 2025. O miolo dos anos 80, já após a redemocratização que se seguiu a 21 anos de ditadura (1964–1985), é o módulo temporal onde álgebras sentimentais se instalam num ambiente famoso pela vastidão do céu. O seu povo sai de lá, mas esse “lá” não sai do seu povo, como escreveu Behr, ao dizer: “me abandone/ te imploro/ te peço/ suplico/ me abandone/ que eu preciso sofrer”. A trama de Anne está toda aí, sintetizada nesses verbos.

Realizadora de Transe (em coautoria com Carolina Jabor, 2022), a cineasta estaciona o argumento de Pequenas Criaturas no labirinto de betão da Brasília de 1986, quando o rock ganhava sotaque brasileiro em bandas como RPM, Paralamas do Sucesso e Legião Urbana. Nesse cenário, surge uma ciranda de personagens, numa estrutura em painel que lembra Robert Altman — não pelas colisões de núcleos dos seus filmes corais dos anos 90/2000 (Short Cuts, The Player), mas por um clima seco mais próximo de 3 Women (1977). Carolina Dieckmann — mais conhecida da televisão — faz pouco cinema, mas quando o faz (veja-se Onde Andará Dulce Veiga? e O Silêncio do Céu), testa as condições normais de temperatura e pressão do drama.

Cabe-lhe ser uma das “pequenas criaturas” do título: Helena, mãe perseverante e esposa infeliz que, mal se instala com a família na capital futurista do Brasil, vê o marido partir em viagem de negócios. Liga para o hotel dele, longe, e quem atende é uma voz feminina, num “alô” de gelar a espinha. Abandonada numa megalópole desenhada em superquadras, questiona as suas escolhas, frustrada e perdida. Outra vez, a poética de Behr ilumina as sensações da personagem: “Brasília já teve de mim/ o pedaço que queria/ o pedaço fedia”. A perceção de ter escolhido o estado errado agrava-se com a revolta do filho adolescente — que descobre o primeiro amor sob o peso do bullying —, enquanto o miúdo de sete anos encontra magia em amizades improváveis, incluindo a de um vizinho esquisitão (um Fernando Eiras com modos de Boris Karloff e uma vulnerabilidade pantagruélica).

Numa democracia com menos de um ano de idade, todos vivem num limbo entre o que foi e o que poderia ser, na sensação de que o futuro já não é como dantes. A luz da direção de fotografia de Pablo Baião sublinha a grandiosidade não de um porvir, mas do hiato afetivo, do que há de oco. A delicada montagem de Marília Moraes, paciente com os engasgos e atenta às esperanças, acomoda bem as lufadas de calmaria. Há a vizinha (Letícia Sabatella), que funcionará como rede de apoio, e há Caco Ciocler — um dos intérpretes em melhor forma desta Première Brasil — no papel do melhor “quase-namorado” que qualquer namorado sonharia ser. Ali, em meio a um projeto de amanhã que teima em não avançar, alianças firmam-se até que rasgos de fantasia fragmentam o realismo áspero de Anne e nos oferecem, como mimo, um final que fita as alturas — gesto de consolo numa longa-metragem de variadas destrezas.