Uma nova reconstrução (ao centro) do crânio esmagado Yunxian 2 (à direita), encontrado na China, junto a outro crânio esmagado (à esquerda), descoberto no mesmo local. Fotografia de Guanghui Zhao

Um crânio gravemente deformado, desenterrado há décadas na margem de um rio na China central, que outrora desafiava qualquer classificação, está agora a abalar a árvore genealógica humana, de acordo com uma nova investigação.

Os cientistas reconstruíram digitalmente o crânio esmagado, que se acredita ter um milhão de anos, e as suas características sugerem que o fóssil pertencia à mesma linhagem de um espécime impressionante chamado “Homem Dragão” e dos Denisovanos — uma população enigmática e recentemente descoberta de humanos pré-históricos com origens obscuras. A idade do crânio e a sua categorização como um antepassado Denisovano primitivo sugerem que o grupo teve origem muito antes do que se pensava.

Uma análise mais ampla, baseada na reconstrução e em mais de 100 outros fósseis de crânios, também traçou um quadro radicalmente diferente da evolução humana, segundo o estudo, divulgado na revista Science. Os resultados alteram significativamente a linha do tempo de espécies como a nossa, Homo sapiens, e Homo neanderthalensis. Os neandertais, humanos arcaicos que viveram na Europa e na Ásia Central antes de desaparecerem há cerca de 40 mil anos, são conhecidos por terem vivido ao lado dos denisovanos, com quem inclusive chegaram a cruzar-se.

“Isto muda imensa coisa, porque sugere que, há um milhão de anos, os nossos antepassados já se tinham dividido em grupos distintos, apontando para uma divisão evolutiva humana muito mais antiga e complexa do que se acreditava anteriormente”, explica o coautor do estudo Chris Stringer, paleoantropólogo e líder de investigação em evolução humana no Museu de História Natural de Londres, numa resposta escrita à CNN por e-mail.

Se estes resultados forem amplamente aceites, as descobertas implicam o recuo da nossa própria espécie em 400 mil anos e uma mudança drástica do que se sabe sobre as origens humanas.

Uma ilustração que sugere como o homem de Yunxian poderia ter sido, com base na reconstrução do crânio Yunxian 2. Jiannan Bai/Xijun Ni

Ancestralidade confusa

O crânio é um dos dois espécimes parcialmente mineralizados desenterrados nos anos de 1989 e 1990, numa área conhecida como Yunxian, em Shiyan, localizada na província de Hubei, na China central. Segundo Chris Stringer, em 2022 foi descoberto um terceiro crânio próximo daquela área, mas ainda não foi formalmente descrito na literatura científica.

“Decidimos estudar este fóssil novamente porque tem uma datação geológica fiável e é um dos poucos fósseis humanos com milhões de anos”, explica o primeiro autor do estudo, Xiaobo Feng, professor da Universidade de Shanxi, na China, num comunicado. “Um fóssil desta idade é fundamental para reconstruir a nossa árvore genealógica.”

Ambos os crânios encontrados em Yunxian estavam deformados como consequência dos milénios passados no subsolo, mas o segundo, conhecido como Yunxian 2, estava melhor preservado. Esse espécime serviu de base para a nova reconstrução, que utilizou tomografia computadorizada de ponta, imagem de luz e técnicas virtuais para separar os ossos da matriz rochosa que os envolvia e corrigir as distorções inerentes ao fóssil.

A idade do crânio, determinada pela datação da camada de sedimentos em que foi encontrado e dos fósseis de mamíferos encontrados na mesma camada, levou alguns especialistas a acreditar que ele pertencia ao Homo erectus, uma espécie humana mais primitiva conhecida por ter vivido em várias zonas um pouco por todo o mundo naquela época. No entanto, embora a caixa craniana grande e achatada do Yunxian 2 se assemelhasse à do Homo erectus, outras características do crânio, como maçãs do rosto planas e rasas, não tinham quaisquer parecenças.

Os investigadores concluíram que Yunxian 2 pertencia a um antepassado primitivo do Homem Dragão, formalmente designado por Homo longi. Os cientistas identificaram o Homem Dragão em 2021, a partir de um crânio encontrado no fundo de um poço no nordeste da China, e os autores de um estudo publicado em junho usaram ADN antigo para associar o Homo longi aos Denisovanos, uma população misteriosa conhecida a partir de informações genéticas extraídas de alguns fragmentos fósseis, mas que se acredita ter vivido em grande parte da Ásia.

A análise mais recente também sugere que outros fósseis difíceis de classificar descobertos na China devem ser agrupados com o Homo longi e os Denisovanos — incluindo fósseis que outra equipa de investigação propôs recentemente como uma espécie recém-descoberta a que chamaram Homo juluensis, um nome que pode ser traduzido aproximadamente como “homem de cabeça enorme”.

Segundo Chris Stringer, a análise do terceiro fóssil do crânio de Yunxian vai permitir à equipa testar a precisão da reconstrução e determinar o lugar que ocupa na árvore genealógica humana.

O crânio foi reconstruído utilizando técnicas avançadas de tomografia computadorizada, imagem ótica e técnicas virtuais. Jiannan Bai/Xijun Ni

Reescrever a história

Com saliências e cristas reveladoras, os crânios são particularmente informativos no estudo da evolução humana, dado que possuem muitas características distintivas. As análises ao crânio são determinantes para confirmar definitivamente uma espécie recém-descoberta.

Com base em informações da nova reconstrução digital e informações anatómicas de 104 crânios e mandíbulas do registo fóssil humano, Chris Stringer e o seu coautor Xijun Ni, professor do Instituto de Paleontologia Vertebrada e Paleoantropologia, em Pequim, reconstruíram as relações evolutivas entre diferentes grupos usando um programa matemático utilizado na biologia evolutiva. Os investigadores desenvolveram o que é conhecido como uma árvore filogenética, mostrando como diferentes espécies humanas podem ter divergido umas das outras ao longo do último milhão de anos.

A análise sugere que as origens do Homo sapiens, dos Denisovanos e dos Neandertais são muito mais antigas do que se pensava anteriormente.

A descoberta desafia a visão tradicional, baseada em estudos de ADN antigo, de que as três espécies começaram a divergir de um ancestral comum há cerca de 700 mil a 500 mil anos — embora nunca tenha ficado claro quem era essa espécie ancestral, por vezes apelidada de Ancestral X.

Os Denisovanos e os humanos modernos tiveram um ancestral comum pela última vez há cerca de 1,32 milhões de anos, de acordo com a nova investigação. Os neandertais separaram-se dessa linha evolutiva mais cedo, há cerca de 1,38 milhões de anos, segundo o mesmo estudo. As descobertas sugerem, então, que os Denisovanos são mais próximos de nós do que os neandertais, que eram vistos por muitos como a espécie irmã mais próxima do Homo sapiens, concluem os investigadores.

Ryan McRae, paleoantropólogo do Museu Nacional de História Natural do Instituto Smithsonian, a reconstrução do crânio deformado parece bem feita. No entender de McRae, que não participou na investigação, o crânio encaixa-se nos padrões do Homo longi e dos Denisovanos.

No entanto, está menos convencido com a análise da árvore filogenética. Na perspetiva de Ryan McRae, a equipa pode ter tentado “fazer demasiadas coisas de uma só vez com dados limitados”.

“Este estudo sugere que os Denisovanos [Homo longi] e os Homo sapiens estão mais intimamente relacionados, à exceção dos Neandertais”, explica Ryan. “Além disso, vai mais além, sugerindo que as origens de todos esses grupos são muito mais antigas do que se esperava, cerca de duas vezes mais antigas, se não mais. Isso colocaria as origens de todos esses grupos na época do Homo erectus.”

“Neste momento, acho que o mais seguro é dizer que o grupo Homo longi/Denisovan e o Homo sapiens [incluindo fósseis muito arcaicos e humanos modernos] parecem mais semelhantes entre si do que aos neandertais”, acrescenta Ryan por e-mail.

Se o período apontado neste artigo estiver correto, Ryan McRae teoriza que o único candidato a ancestral comum do Homo sapiens, Homo longi e Homo neanderthalensis seria o Homo erectus. “Não há realmente nenhuma outra espécie conhecida do período de cerca de 1,5 milhões de anos que faça sentido”, conclui o investigador.

O antecessor da espécie humana Homo viveu há cerca de 1 milhão de anos, e outra, o Homo heidelbergensis, há cerca de 700 mil anos.

Chris Stringer já previa algum ceticismo em torno das descobertas. Os investigadores querem ampliar as análises para incluir mais fontes de dados e outros fósseis, incluindo mais da África, para refinar as conclusões.

O estudo levanta uma outra questão sobre onde viviam as populações ancestrais do Homo sapiens, dos neandertais e do Homo longi: dentro ou fora da África, que é amplamente considerada o berço da humanidade.

Embora o estudo faça alguns progressos na resolução do que os paleoantropólogos designam por “confusão no meio” — a confusão de espécimes humanos nos registos fósseis entre 1 milhão e 300 mil anos atrás —, descobertas como o crânio Yunxian 2 relembram que os cientistas ainda têm muito a aprender sobre as origens humanas.

“Quando comecei a trabalhar com evolução humana há mais de 50 anos”, recorda Chris Stringer, “os registros do Leste Asiático eram marginalizados, ou os seus fósseis eram considerados apenas como ancestrais diretos dos asiáticos orientais recentes”. “Mas o que vemos agora em Yunxian — e em muitos outros locais — é que o Leste Asiático preserva pistas essenciais para os estágios posteriores da evolução humana.”