1. O desafio jurídico da cobertura do lipedema
O conflito entre o direito fundamental à saúde e as limitações impostas pelos contratos de planos de saúde tem se acentuado em torno do tratamento do lipedema, doença crônica e rara reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (CID-11, código EF02.2). Trata-se de uma condição dolorosa e progressiva, que causa acúmulo anormal de tecido adiposo em membros inferiores e superiores, comprometendo a mobilidade e a qualidade de vida.
Embora apresente alterações corporais visíveis, não possui natureza estética, mas funcional e terapêutica. A cirurgia de lipoaspiração tumescente com laser, indicada em estágios avançados, tem finalidade reparadora e busca impedir o agravamento do quadro clínico, controlando a dor e preservando a função motora. É um procedimento altamente especializado, realizado por número ainda reduzido de profissionais capacitados no país, o que acentua a necessidade de proteção jurídica e acesso equitativo ao tratamento.
2. O tratamento jurídico antes do STF
Antes da decisão do Supremo, os tribunais brasileiros vinham construindo uma linha uniforme de precedentes que reconheciam o direito das pacientes ao tratamento, com base na prescrição médica fundamentada, na ausência de alternativa eficaz e na proteção da dignidade da pessoa humana.
Diversos Tribunais de Justiça estaduais consolidaram entendimentos favoráveis, destacando-se:
- TJ/ES – Urgência e risco clínico (dezembro/2023). No AI 5007786-11.2023.8.08.00001, manteve-se tutela de urgência que determinava a realização da cirurgia indicada para tratamento de lipedema. O tribunal reconheceu que a probabilidade do direito e o risco de agravamento clínico justificavam a intervenção imediata, afirmando que a urgência em saúde não se limita ao risco de morte, mas também abrange a prevenção do agravamento de doenças crônicas.
- TJ/RJ – Caráter terapêutico e rol mitigado (agosto/2023). No AI 0046534-94.2023.8.19.00002, aplicou-se a lei 14.454/22 e o conceito de taxatividade mitigada do rol da ANS, reconhecendo que a cirurgia para lipedema não se confunde com procedimento estético, mas constitui tratamento terapêutico necessário. Com base nos enunciados 210 e 340 do próprio Tribunal, manteve-se a tutela que autorizou a realização da cirurgia fora da rede credenciada, diante da inexistência de profissionais habilitados.
- TJ/SP – Autonomia médica e ônus probatório (janeiro/2024). Na apelação cível 1078653-87.2023.8.26.01003, reafirmou-se a autonomia do médico assistente e considerou-se abusiva a recusa do plano de saúde em custear cirurgia prescrita. A corte entendeu que cabe à operadora provar a existência de alternativa eficaz no rol, ônus do qual a ré não se desincumbiu, aplicando o entendimento consolidado pelo STJ sobre o rol taxativo mitigado.
- TJ/SP – CID reconhecido e danos morais (junho/2024). Em decisão posterior (apelação cível 1010981-59.2023.8.26.00044), o mesmo tribunal reconheceu expressamente o registro do lipedema na CID-11, reforçando que o procedimento tem caráter reparador e não meramente estético. Destacou que, ao divergir da prescrição médica, a operadora deveria ter instaurado junta médica própria, nos termos da resolução CONSU 08/98. O acórdão também fixou indenização por danos morais, em razão da negativa abusiva e da ofensa à dignidade da pessoa humana.
Essas decisões, somadas a precedentes do STJ (EREsp 1.886.929/SP e 1.889.704/SP)5, revelam uma tendência consolidada de proteção à paciente, ainda que os tribunais aplicassem critérios predominantemente clínicos e contratuais, com base no CDC e no art. 196 da CF/88.
3. A virada do STF – a decisão da ADIn 7.265 (setembro/2025)
Em 18/9/25, o STF julgou a ADIn 7.265, atribuindo efeito vinculante e erga omnes à interpretação do §13 do art. 10 da lei 9.656/98, dispositivo introduzido pela lei 14.454/226.
O referido parágrafo dispõe que: “Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no §12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que: I – exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou II – existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.”
O Tribunal, sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, considerou constitucional a obrigação de cobertura de procedimentos fora do rol da ANS, desde que preenchidos cumulativamente os seguintes requisitos técnicos e jurídicos, a serem comprovados pela parte autora: 1. Prescrição fundamentada por profissional habilitado; 2. Inexistência de negativa expressa da ANS ou de análise pendente em processo de atualização do rol (PAR); 3. Ausência de alternativa terapêutica adequada no rol vigente; 4. Comprovação de eficácia e segurança do tratamento com base em evidências científicas de alto grau; 5. Existência de registro na Anvisa.
Além disso, o STF determinou que o juiz não pode decidir apenas com base na prescrição médica, devendo, sempre que possível, consultar o NATJUS ou profissionais técnicos especializados e oficiar a ANS sobre o tratamento deferido. A decisão representa uma mudança de paradigma: a prescrição médica, antes suficiente, passa a ser um dos elementos de um conjunto probatório mais robusto, impondo à advocacia uma atuação mais técnica e interdisciplinar.
4. Os novos rumos da judicialização
Com a tese fixada pelo Supremo, a judicialização das ações envolvendo o tratamento do lipedema entra em uma nova fase. O foco deixa de ser apenas a análise da prescrição médica e passa a exigir demonstração técnica do cumprimento dos requisitos fixados pela Corte.
Dessa forma, o advogado que atua em Direito da Saúde deve, desde a petição inicial:
- Comprovar a eficácia científica do tratamento, com base em estudos clínicos e diretrizes internacionais;
- Demonstrar a inexistência de alternativa terapêutica eficaz no rol da ANS;
- Anexar laudos multidisciplinares que evidenciem o caráter funcional e reparador da cirurgia;
- E integrar elementos médicos e jurídicos, em conformidade com o art. 373 do CPC e com a decisão do STF.
Contudo, a transferência dessa carga probatória ao consumidor representa um retrocesso em relação ao sistema protetivo do CDC, que consagra, em seu art. 6º, VIII, a possibilidade de inversão do ônus da prova quando presentes a verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência do consumidor.
O consumidor, parte vulnerável e sem acesso aos meios técnicos ou científicos de comprovação, não pode ser compelido a demonstrar critérios que são de natureza eminentemente regulatória e científica, atribuições que pertencem às operadoras e à ANS.
Assim, a nova sistemática, embora busque rigor técnico, fragiliza a efetividade da tutela consumerista, impondo à advocacia o duplo desafio de assegurar o direito à saúde e preservar o equilíbrio da relação contratual.
Essa exigência, embora dirigida formalmente ao magistrado, impõe reflexamente um novo padrão de atuação à advocacia em saúde. Cabe ao advogado apresentar, já na petição inicial, provas técnicas e científicas consistentes, de modo a facilitar o exame judicial e reforçar a credibilidade do pedido. O processo passa, assim, a exigir um diálogo efetivo entre o Direito e a medicina baseada em evidências, conferindo maior segurança, previsibilidade e coerência às decisões judiciais.
5. Conclusão
O julgamento da ADIn 7.265 pelo STF, embora tenha reafirmado a possibilidade de cobertura para procedimentos fora do rol da ANS, inaugurou um modelo que tende a dificultar o acesso efetivo ao tratamento. Na tentativa de trazer previsibilidade e segurança jurídica, a decisão acabou criando um percurso mais técnico e burocrático, que nem sempre dialoga com a urgência da vida real dos pacientes.
Essa mudança tem impacto ainda mais sensível nos casos de lipedema, doença rara e crônica reconhecida pela OMS (CID-11 EF02.2). Seu tratamento específico, a lipoaspiração tumescente com laser, não está incluído no rol da ANS e é realizado por poucos profissionais no país. A decisão do STF, ao exigir o cumprimento cumulativo de critérios técnicos e científicos, acaba por criar barreiras adicionais para pacientes com doenças raras, que muitas vezes não dispõem de alternativas terapêuticas amplamente validadas. O lipedema, embora provoque alterações visuais no corpo, tem natureza funcional e reparadora, e o procedimento indicado visa controlar a dor, reduzir o avanço da doença e preservar a mobilidade, não se tratando de mero tratamento estético.
Assim, o novo modelo de judicialização exige sensibilidade: a tecnicidade não pode se sobrepor à urgência de quem convive com uma doença rara, dolorosa e incapacitante. O Direito da Saúde deve permanecer fiel à sua essência constitucional assegurar, com humanidade e justiça, a efetividade do direito fundamental à saúde.
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1 TJ-ES – AI nº 5007786-11.2023.8.08.0000, Rel. Des. Annibal de Rezende Lima, julgado em 11/12/2023.
2 TJ-RJ – AI nº 0046534-94.2023.8.19.0000, Rel. Des. Elton Leme, julgado em 25/08/2023.
3 TJ-SP – Ap. Cív. nº 1078653-87.2023.8.26.0100, Rel. Des. Ana Liarte, julgado em 12/01/2024.
4 TJ-SP – Ap. Cív. nº 1010981-59.2023.8.26.0004, Rel. Des. Francisco Loureiro, julgado em 10/06/2024.
5 STJ – EREsp nº 1.886.929/SP e 1.889.704/SP.
6 STF – ADI nº 7265, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Pleno, julgado em 18/09/2025.