“O PS voltou”. A frase era dita na sede nacional do partido mesmo antes de apurados quaisquer resultados autárquicos, para tentar valorizar logo a posição de segunda força política do país. O trauma do avanço do Chega, nas últimas legislativas, pairou sobre toda a campanha autárquica e a sensação de “alívio” entre socialistas é clara. Nem por isso há convicção sobre o pior já ter passado e os críticos não compram a narrativa do resultado “extraordinário” proclamado por José Luís Carneiro.

É muito transversal o sentimento de “alívio” entre os socialistas, essencialmente porque o partido estava num sítio sombrio, onde crescia o receio da erosão, à imagem do que aconteceu com o PS francês. Agora, na hora da avaliação dos resultados autárquicos, reconhece-se que o PS “sobreviveu”, como diz um dirigente do partido. “O resultado é bom para o PS porque o liberta do trauma das legislativas”, acredita um deputado ouvido pelo Observador.

“Dá para olhar para o futuro”, arrisca outro dirigente em conversa. Ainda que reconheça que o PS “continua num plano de declínio na implantação ideológica, tem um balão de oxigénio gigante” nestas autárquicas.

Na rádio Renascença, na manhã desta segunda-feira, Mariana Vieira da Silva reconhecia que o resultado obtido nas autárquicas “dá força ao PS e ao secretário-geral. Dá força a um partido importantíssimo para a nossa democracia. Todos aqueles que acharam que as últimas legislativas tinham sido o princípio do fim, sabem hoje que não é assim.”

Um alto quadro do partido vai mais longe na análise e vê mesmo a “recuperação da deriva que levou o PS à hecatombe”. “O PS voltou a ser PS e os portugueses voltaram a votar PS”, continua, convencido de que a mudança do líder, entre legislativas e autárquicas, contribuiu para o resultado da noite eleitoral autárquica, mesmo quando as escolhas de quem foi a votos nestas eleições ainda venham da anterior era, a de Pedro Nuno Santos.

Mas este otimismo com o momento está longe de ser unânime ou de não deixar sombras sobre José Luís Carneiro. Vieira da Silva, por exemplo, ao mesmo tempo que reconhece que o resultado permite que o partido coloque a cabeça fora de água, também aponta o copo meio vazio nas duas áreas metropolitanas, Lisboa e Porto, onde o PS não foi capaz de conquistar ou manter Lisboa, Sintra, Cascais, Porto e Gaia.

“É preciso que o PS tenha para estas duas áreas uma mensagem tão forte como aquela que permitiu ganhar Viseu, recuperar Bragança, Coimbra, Évora e Faro”, diz a antiga ministra que mantém uma posição crítica sobre Carneiro desde que este avançou para a liderança sem tempo para reflexão interna no pós trauma das legislativas. Agora é tempo de se fazer uma avaliação, defende nesse mesmo comentário, apontando sobretudo à estratégia para as grande cidades. E no caso de Lisboa, a socialista que chegou a ser apontada como candidata, surge também crítica, sugerindo que se reflita por que motivo o PS não conseguiu recuperar “onde a avaliação do presidente não era positiva“.

Não é a única, já que esta segunda-feira, na rádio Observador, Pedro Costa, que faz parte da direção do PS e foi deixado fora das listas do PS à CML (o que queria), foi duro na análise do que aconteceu em Lisboa, apontando o dedo a Alexandra Leitão que se mostrou, disse, “uma candidata incapaz de cumprir os objetivos para estas eleições” e uma “candidatura que não agregou ninguém”.

“A diferença de Alexandra Leitão para os presidentes de Junta em praticamente todas a freguesias da cidade é considerável“, notou ainda o socialista apontando para a quantidade de eleitores que votaram PS nas assembleias de freguesia mas não na Câmara. Para Pedro Costa, Leitão “foi bem sucedida” a demonstrar a que a “coligação não era radical“, mas não em “demonstrar que era melhor” do que Moedas e de que a coligação era “uma alternativa para a cidade”.

Também acaba a alinhar com Mariana Vieira da Silva na necessidade de haver um debate interno, que atira para o congresso. “O PS deve sentar-se e encontrar um caminho comum“, disse na mesma entrevista ao Observador defendendo a importância de “coordenação política” entre a direção nacional e os autarcas do partido.

Outro socialista que vê o PS sair das  autárquicas com “legitimidade reforçada como alternativa”, também aponta que ainda há “um caminho longo pela frente” na via da recuperação. “É preciso fazer um grande estudo para repensar o PS como marca”, diz um dirigente que previne: “Se houvesse legislativas amanhã, não sei se o PS não estava no plano da degradação“.

Quanto a ameaças para a atual liderança do PS, nesta fase são afastadas. Ninguém vai “criar casos”, como diz um desses críticos de Carneiro. “Se alguém pensa em aventuras dessas está enganado, porque se isso acontecer o PS acaba”, vaticina um responsável do partido que não é alinhado com a atual direção. Mas a partir destes resultados autárquicos, a oposição interna passa a ter material objetivo para crítica e também tem espaço para ir fazendo caminho — não há eleições à vista no calendário regular (além das presidenciais) e ninguém tem de se posicionar como alternativa para já, apenas terá de marcar terreno.

E isso vai começar a notar-se. Entre os socialistas mais críticos de Carneiro, já se ouve que “o ‘alívio do PS’ é um efeito de trauma, que só se explica pelo último resultado nas legislativas, porque em nenhuma circunstância pode estar satisfeito com este resultado”.

Outro socialista lembra que “os objetivos definidos pelo próprio José Luís Carneiro não se verificaram. E ninguém o está a avaliar pelos objetivos que ele próprio enunciou: ganhar Lisboa e Porto e a ANMP”. Durante toda a campanha, o líder socialista colocou o maior número de câmaras como fasquia e acabou atrás do PSD (que ficou com 136 câmaras, face às 128 que o PS teve). E nos últimos dias de campanha, Carneiro subiu essa mesma fasquia, animado por sondagens que apontavam empates técnicos em Lisboa e Porto, e catalogou de “fundamentais” a conquistas das duas cidades.

“O PSD ganha tudo em todas as métricas”, acrescenta ainda outro socialista sobre os resultados globais nas autárquicas, apontando no mesmo sentido. Além de ter o maior número de municípios e a presidência da ANMP, tem maiores números de municípios em capitais de distrito e regiões, fez “o pleno” entre as cinco maiores e tem mais municípios entre as dez maiores. E ainda reconquistou Guimarães e manteve Braga Barcelos e Famalicão — um recuo brutal para o PS na região do Minho que está a causar alguma apreensão no partido, sobretudo Guimarães que era socialista há mais e três décadas.

[Apesar da euforia em torno de Freitas, Soares recupera. O debate com Zenha será decisivo. Quando acabar, nunca mais serão amigos. A “Eleição Mais Louca de Sempre” é o novo Podcast Plus do Observador sobre as Presidenciais de 1986. Uma série narrada pelo ator Gonçalo Waddington, com banda sonora original de Samuel Úria. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E pode ouvir o primeiro episódio aqui e o segundo aqui]

Há ainda outra análise socialista da noite eleitoral que parece ter irritado muito em particular o ex-líder do partido. Pedro Nuno Santos veio dizer que “não é verdade que o Chega foi o grande derrotado da noite”. “Não é negando a realidade, no presente, que a vamos alterar, no futuro”, escreveu nas redes sociais esta segunda-feira à noite numa publicação, onde conclui que “não houve nenhuma retração do Chega, não enfiemos a cabeça debaixo da areia”, mas houve “retração” na esquerda.

Na sua análise, Pedro Nuno nota que “o Chega conseguiu, sem qualquer implantação relevante no poder local, passar de 19 vereadores em 2021 para 137 em 2025. E consolidou a sua posição na maior área metropolitana do país – Lisboa – e no distrito de Setúbal, onde são a segunda força política em vários municípios: Loures e Odivelas, no distrito de Lisboa; ou Moita, Montijo, Palmela, Seixal e Sesimbra, no distrito de Setúbal”.

Além disso, também contesta que a comparação de resultados se faça com as legislativas, sugerindo que Carneiro só o fez por ser “mais conveniente”. “É comparar alhos com bugalhos. São duas eleições de natureza distinta, em que os temas em jogo são muito diferentes. Se quisermos comparar com as últimas legislativas, então teríamos de concluir que o grande vencedor da noite teria sido o PCP, porque teria conseguido duplicar a votação de maio para outubro”, ironiza. O tempo, concluiu na sua análise, é de “retração” para a esquerda que “teve perdas consideráveis“.

Aquilo que Carneiro classificou de “extraordinário à luz dos resultados de há três meses” está longe de ser unânime no partido. “É o que acontece num ciclo de oposição. Perdem-se centros urbanos, aguentam-se castelos importantes”, desdramatiza um ex-governante socialista. Mas o que o PS perdeu tem especial peso “num contexto em que o PSD tem uma personalidade do partido como Presidente da República, é Governo nacional e nas duas Regiões Autónomas”.

Só que o caminho para mudar este quadro é longo e, por isso mesmo, é cedo para que a análise dos resultados eleitorais do partido na oposição desencadeie mais do que críticas públicas. Não é tempo para ficar em “estado de choque”, como Guterres em 1991, ou para ver “poucochinho” num resultado eleitoral, como Costa em 2014.

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