Na pior das hipóteses, porém, já terá servido para voltar a evocar o nome de Amália, algo necessário porque, aponta Ricardo Ribeiro, “os portugueses têm um problema de memória”. “É um problema do início do Atlântico e do fim do Mediterrâneo. Perdemos facilmente a memória, mas de quando em vez a Amália vive. E quando de repente parece que já não se fala dela, vem qualquer coisa que a põe outra vez onde ela merece estar”, defende. Há 73 anos, por exemplo, mereceu ombrear com a elite nova-iorquina, quando deu a conhecer os seus encantos em terras transatlânticas.
“Há uma rapariga portuguesa no La Vie en Rose que, para mim, é a cantora estrangeira mais arrebatadora que os nossos night clubs apresentaram, desde há muitos anos”. Foi desta forma que o lendário crítico de teatro e música, Douglas Watt, se referiu a Amália Rodrigues nas páginas da revista New Yorker, destacando não só a qualidade da sua voz — “de uma bela limpidez, assim como uma espantosa flexibilidade” —, mas também como a usava, equiparando a sua técnica ao “grito do muézin, chamando à oração, do alto da mesquita”.
Estávamos em 1952, e os EUA já tinham travado contacto com o fado — Ercília Costa, a “santa do fado”, já tinha ido ao país duas vezes, pela mão de António Ferro —, mas nunca desta maneira, numa fase em que Amália Rodrigues já começara a construir a sua lenda internacional, causando burburinho nas diferentes geografias por onde passava, cantava e ia bebericar ao cancioneiro local. Esta primeira passagem por Nova Iorque, na famosa e exclusiva boate acima mencionada, causou impacto imediato. “Era para ir por três ou quatro semanas e fiquei catorze”, afirmou a cantora ao seu biógrafo, Vítor Pavão dos Santos, em Amália: Uma Biografia.
Após o sucesso da primeira passagem, passados dois anos, Amália não só regressou ao La Vie en Rose, como estreou-se no igualmente prestigiado Mocambo, em Hollywood. Pelo meio, tornou-se na primeira portuguesa a figurar na televisão americana, no popular programa do cantor Eddie Fisher (pai de Carrie Fisher), de quem ficou amiga, apesar de não ter gostado nem da experiência de cantar neste formato — “é demasiadamente frio” — nem de ter bebido Coca-Cola pela primeira vez na vida.
Esses tempos dos anos 50, conta, foram marcados por jantares com os Sinatra ou convites às festas no lendário hotel Waldorf-Astoria, onde paravam figuras como James Stewart ou Jennifer Jones e onde chegou a cantar casualmente com Nat King Cole ou Eartha Kitt. No entanto, destas passagens resultaram também solicitações mais sérias, como uma proposta por parte do ator Danny Kaye para que entrasse com ele num espetáculo da Broadway. “Eu não quis. Quem sabe, se tivesse ido, correndo-me bem as coisas, como sempre correram em toda a parte, talvez eu tivesse partido dali para uma coisa importante. Eu podia ter sido muita coisa, se não tivesse sido aquilo que sou”, admitiu. Mais à frente, terá também sido sondada para participar num filme em Hollywood, algo que também recusou.
No entanto, nem só de “nãos” se fizeram estas primeiras passagens da fadista pelos EUA. Foi neste país onde editou o seu primeiro vinil longa-duração, tecnologia recentemente estreada: Amalia Rodrigues Sings Fado From Portugal and Flamenco From Spain. Lançado em 1954 pela Angel Records, este, segundo a investigação de Miguel Carvalho em Amália – Ditadura e Revolução, terá sido financiado pela agência publicitária George Peabody and Associates, por sua vez contratada pelo Estado Novo para promover a imagem de Portugal. Amália, no entanto, sempre reclamou independência face ao regime e a António Ferro — “achava que eu era a melhor toalha que tinham em casa, mas nunca me ajudou a ser a Amália Rodrigues”, defendeu na sua biografia —, tanto que, nessa fase, recusou propostas subsequentes para gravar clássicos de Cole Porter e Ira Gershwin. “Fiquei muito contente de me terem convidado, mas estava farta da América e vim-me embora”, assume.
O seu destino, porém, cruzar-se-ia profundamente com os EUA nas décadas seguintes. Em 1964, mereceria um perfil do The New York Times, sendo descrita como “a sumo-sacerdotisa do culto do amor; dos amores perdidos, atraiçoados, amaldiçoados e não correspondidos”. Já no final da década, em atuações no clube Chateau Madrid, onde os melhores artistas ibéricos paravam na “Big Apple”, seria apontada pela revista Newsweek como “o equivalente português de Edith Piaf e Billie Holiday”, com “um voz escura e emocionante, carregada de nuances subtis de um imenso colorido, que tornam a dor quente e a paixão fria”.