Foi ao imergir na rotina de sua casa em obras que Augusto Massi pensou em escrever Eletricista. E, em uma nova parceria com Daniel Kondo, escritor e ilustrador criaram um livro poético e altamente expressivo sobre o afeto e sobre um pai provedor.

Massi inicia a primeira camada dessa narrativa com a relação entre laços familiares e a rede elétrica de um universo tão particular quanto a nossa casa. Kondo, que tem a materialidade como um elemento forte e presente em seu trabalho, amalgamou suas imagens ao texto em um processo
de criação que durou dez anos e algumas versões jogadas no lixo.

Em alguns momentos, nesse ritual entre o “tempo-massi” e o “tempo-kondo”, eles cortavam ora o texto, ora a imagem e, assim, Eletricista foi amadurecendo e deixando de ser apenas sobre os dois. O eletricista pode ser branco, nipônico, negro ou pardo. Mas sabemos que é um homem, um pai, e, através dele, percebemos a invisibilidade de uma profissão.

A primeira esfera do livro é sobre a relação familiar e suas metáforas entre o afeto e a energia elétrica; a segunda é sobre a importância dessa profissão, que ganha mais nitidez a partir da progressão de se ter luz dentro da casa, depois no quarteirão, nos fios de alta tensão, na hidrelétrica, na escola, nos hospitais, no campo de futebol, até chegarmos à Lua. “Se os astronautas pisaram na Lua, é porque eletricistas do mundo inteiro contribuíram de alguma forma.”

Nesse momento, o livro não é mais sobre o pai, presente e delicado. É sobre uma diferença social que só é visível por um sobrevoo.

A base de inspiração estética do livro foi o construtivismo russo, no qual os heróis da revolução de 1917 eram tão invisíveis quanto os eletricistas, os carpinteiros e os artesãos.

Os autores Augusto Massi e Daniel Kondo (Divulgação)

O mundo do eletricista é um mundo muito material, assim como o dos heróis da Revolução Russa. Estes usavam instrumentos metálicos (armas, pás), a exemplo dos fios do eletricista. Por isso, Kondo fez o livro todo usando o sistema de cores pantone metálico e ilustrou a luz­-energia em pantone neon. Cria-se, então, um equilíbrio entre tons frios como os metais das ferramentas e os tons brilhantes da energia elétrica.

Experimentação

Eletricista é dedicado a Angela Lago (1945-2017). Escritora e ilustradora, ela foi uma importante autora de livros para a infância com um trabalho voltado à experimentação e à investigação técnica do livro como suporte.

A partir da década de 1990, no Brasil, houve fatores políticos e econômicos que impactaram o mercado editorial e influenciaram a elaboração do livro como objeto. O primeiro deles foi em 1992, quando chegou ao fim a Política Nacional de Informática (PNI), que proibia a importação de computadores até aquele ano.

O mundo do eletricista é um mundo muito material, assim como o dos heróis da Revolução Russa

Foi essa abertura de mercado que possibilitou a chegada dos computadores nas redações, gráficas e editoras. Dois anos depois, a estabilidade econômica trazida pelo Plano Real, em 1994, a baixa do dólar no ano seguinte, a evolução da indústria gráfica e o advento da internet provocaram mudanças marcantes na forma de trabalhar.

O novo contexto trouxe um olhar renovado para o modo de produzir esses livros e, consequentemente, para a relação entre o texto, a imagem e o suporte do livro. Além das gráficas, os profissionais liberais (freelancers) também se apropriaram dos computadores, scanners, máquinas fotográficas digitais e outras tecnologias como instrumentos de trabalho.

Todas essas inovações favoreceram um alto índice de experimentação técnica e gráfica, elementos essenciais para a construção do livro­-álbum, uma obra em que o suporte, a narrativa textual e a narrativa visual se misturam. O design interage com o texto e com a imagem em um diálogo contínuo de três vozes. A narrativa vai surgir, assim, de infinitas possibilidades e articulações, de acordo com o que se quer expressar.

Massi e Kondo vivenciaram essa transição já inseridos no mercado de trabalho. Isso de alguma forma explica por que Eletricista é tão bem elaborado, com uma relação precisa entre texto e imagem, e dedicado a Angela Lago. O texto de quarta capa não deixa por menos: é de Chico Homem de Melo — designer, professor e grande pesquisador do design gráfico brasileiro.

Se a década de 1990 foi um período que proporcionou ao mercado editorial toda essa elaboração e experimentação, o ano de 2025 não segue na mesma toada. São poucas as editoras que hoje em dia — por uma questão de custo — podem bancar a publicação de um livro tecnicamente tão sofisticado quanto o Eletricista. O que o torna, como Homem de Melo escreveu, um livro contracorrente.