O sexto município mais populoso, Loures, é o primeiro dessa lista que é do PS e com o autarca que mais controvérsia no partido provocou no último ano: Ricardo Leão. Mesmo com o Chega a subir no concelho e a passar a segunda força política, o socialista com traços populistas na ação política conseguiu mais de 14 mil votos do que em 2021, chegou à maioria absoluta na Câmara, reforçando a influência socialista num grande município urbano. Testa a identidade do PS e o seu posicionamento estratégico, passando pela relação com o Chega — que Leão desdramatiza, pedindo clareza ao líder socialista.

Um estilo solto, direto, de confronto. Uma gestão com foco nas questões da segurança, ordem e justiça social, temas dominados pelo Chega nos últimos anos. As polémicas sobre despejos em bairros municipais e demolições de habitações ilegais. Um trajeto que faz com que Ricardo Leão tenha um efeito polarizador dentro do seu próprio partido onde é visto entre o autarca que “cumpre a lei e exerce autoridade” e o “Chega de cor de rosa”, como ouviu o Observador nas várias conversas que teve com socialistas sobre se há lições a tirar desta vitória em Loures.

Em entrevista à Rádio Observador, na manhã de terça-feira, Leão falava já com a maioria absoluta e defendia que “o PS tem de mudar a bússola” e focar-se numa “classe média que trabalha, que se sente marginalizada e esquecida, na educação mas também no IRS. Que têm de cumprir com obrigações todos os meses e olham para o lado e veem os que se aproveitam de falhas no sistema e isso cria dissabor”. Promete provocar o partido com essa discussão, ao mesmo tempo que antecipa resistências internas à sua linha e eventuais argumentos em defesa dos princípios do PS com uma frase: “Quando se fala de justiça social é para todos, não é só para alguns.”

António Costa? “Que se entretenha na UE. Não faz cá falta”

A sua máxima tem sido: “Há regras, todos temos direitos, mas também temos deveres.” Usa-a para a questão da habitação municipal e o problema de falta de pagamentos que enfrentou no município, mas na verdade serve para o resto, colocando em confronto direto a fidelidade à tradição social-democrata e a tentação do pragmatismo que, muitas vezes, tocou no autoritário e até soou insensível à realidade social — chegou a falar em despejos “sem dó nem piedade” nos bairros municipais.

No pós-autárquicas e confrontados com a lição a tirar do resultado em Loures, a resposta socialista divide-se entre o “espero que não” e o “espero que sim”. Mas há uma questão que acaba por ser assumida como importante: o partido tem de refletir sobre o seu posicionamento, sob pena de continuar a perder eleitores. E o efeito Leão pode ser um ponto de partida, já que expõe de uma só vez a necessidade de perfis autárquicos mais próximos do território, a entrada em temas que, até aqui, estão exclusivamente sob exploração do Chega, para conseguir chegar ao centro mais popular, o eleitorado que valoriza o papel do Estado, mas também o cumprimento de regras. E, no fim, como fazer isto tudo — entrar por discursos de criminalidade, ordem e imigração — sem perder identidade.

Carpool com Ricardo Leão: Chega à perna em Loures? “Eu tenho a perna grossa”

Um alto dirigente considera que, no caso de Loures, “a proximidade e identificação com os problemas ajudou certamente” ao resultado alcançado por Ricardo Leão, mais do que entrar pela questão de ferir princípios base do partido. Aliás, a mesma fonte acredita que o que Leão fez foi “ajustar-se ao diagnóstico local”, mas acredita que “ele tem espaço para pensar como pensa no quadro do PS”.

“É solto nas palavras”, diz sobre o autarca de Loures outro destacado socialista que acredita que as “pessoas estão cansadas da contenção, das palavras medidas, de medo de dizer e de fazer.” O sucesso de Leão pode não estar só nas políticas que executa, mas também na forma como “lida com os problemas”, diz, concluindo: “Há nele uma dose saudável de populismo“.

Mas há também quem vá além do estilo e forma e considere que “o PS não deve demonizar o exercício de autoridade em funções executivas.” Os mais de 40 mil votos que conquistou no concelho de Loures mostram que “a população o compreende”, argumenta a mesma fonte que também vê espaço dentro do PS para esta linha de intervenção local ao estilo Leão.

Carpool com Ricardo Leão. “Isto não é ser populista, é ter um problema na mão e atacá-lo”

Aliás, o discurso do autarca de Loures é apontado por este mesmo socialista como capaz de “fixar eleitorado PS e do PSD, não o do Chega”. No domingo no município de Leão, o PS ficou com uma maioria absoluta e o PSD manteve praticamente o mesmo número de votos de 2021, ainda que ultrapassado pelo Chega no lugar de segunda força política. Mesmo com o partido de Ventura a conquistar mais 12 mil votos em Loures, os dois partidos não perderam votos — o PS esteve perto de duplicar a votação de há quatro anos e o PSD, desta vez coligado com o CDS, teve cerca de mais dois mil votos. A grande queda foi do PCP, que encolheu em metade o número de votos face a 2021 (passou de cerca de 20 mil para 10 mil).

A tese é que quando alguém ocupa o espaço das respostas concretas aos problemas, isso não permite a liderança do Chega. Mas o raciocínio não é unânime no partido onde também se aponta que sempre que os partidos do poder se aproximam do discurso do Chega, a linguagem normaliza-se e o partido de Ventura cresce. E os resultados de Loures mostram, de facto, também o crescimento do Chega.

A análise de Leão é global e mais simples: “A população sente ausência de respostas por parte do PS e isso faz crescer o Chega. Não há outra análise, é só esta. E quem for capaz de resolver os problemas das pessoas cresce. O Chega é resultado da inércia“.

Do alto da maioria absoluta recém-conquistada, Leão engrossa a voz e, na mesma entrevista na rádio Observador, diz que “o PS tem de mudar obrigatoriamente. Não quero que a cada ato eleitoral o PS ainda respire, isso é muito poucochinho — e a palavra usei-a bem”. O “poucochinho” foi usado por António Costa em 2014, na avaliação do resultado do PS nas Europeias, e desencadeou a mudança de liderança do PS. Mas não é isso que Leão defende agora, embora também aperte Carneiro quanto ao compromisso eleitoral que fez os candidatos a votos em listas do PS assinar.

Definiu que os autarcas eleitos pelo partido não poderiam fazer acordos com o Chega, mas o absoluto Leão, que agora não precisa de acordos para garantir governabilidade, não deixa de querer saber mais. “É importante clarificar. Uma coisa são coligações oficializadas — com que também não concordo –, mas há matérias que muitos presidentes de câmara vão ter de articular com o Chega e o PS tem de clarificar a sua posição ou vai deixar muitos autarcas de mãos atadas“.

PS trava acordos com Chega, mas no terreno não se rejeitam conversas pós-eleitorais

Na memória ainda tem a enorme polémica criada quando aprovou uma proposta do Chega sobre despejos em bairros municipais — na sequência dos tumultos noturnos na região de Lisboa. O autarca defende que todas as propostas sejam “analisadas” e que o seu partido não deixe de “agarrar” nos problemas das vidas das pessoas e os resolva”: “Desde quando é que os temas são propriedade dos partidos? As pessoas que estão no poder têm de resolver os problemas“.

O posicionamento de Leão tem sido controverso no partido e, na polémica dos despejos, o autarca foi até alvo de um artigo de opinião a várias mãos — entre elas as do antigo líder António Costa — “em defesa da honra do PS”. Logo aí percebeu-se que o estilo de Leão e a abordagem no território geravam divisões dentro do partido.

[Apesar da euforia em torno de Freitas, Soares recupera. O debate com Zenha será decisivo. Quando acabar, nunca mais serão amigos. A “Eleição Mais Louca de Sempre” é o novo Podcast Plus do Observador sobre as Presidenciais de 1986. Uma série narrada pelo ator Gonçalo Waddington, com banda sonora original de Samuel Úria. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E pode ouvir o primeiro episódio aqui e o segundo aqui]

Os meses passaram, Leão subiu à maioria, e agora comenta-se internamente que Loures é um dos casos em que “há lições a tirar” por parte do partido que perdeu para o PSD a vantagem em câmaras e que já vinha de uma derrocada colossal nas legislativas. Ainda assim, mantêm-se muitas críticas e cautelas face à atuação de Leão.

Ao Observador, o ex-governante João Costa diz que espera que, no PS, “não se veja naquele tipo de declarações o que servirá de referência para o futuro”. Independentemente de discordar com o estilo, reconhece “obra feita” a Ricardo Leão mas volta a insistir no “medo” da “tentação de olhar” para o autarca “como o caminho a seguir” no PS.

Ao Observador, Maria Antónia Almeida Santos lembra que se incluiu nas críticas internas que, na altura de cada uma das polémicas, foram feitas a Ricardo Leão. E mantém que “não se pode valer de tudo para conseguir votos, há valores acima dos votos como o do humanismo”. Diz mesmo que há exemplos, no país, de autarcas com sucesso eleitoral que não precisaram de fazer o “discurso do Chega”, apontando Isaltino, em Oeiras, e Inês de Medeiros, em Almada.

Lembra ainda o compromisso autárquico estabelecido pelo secretário-geral do PS para dizer que “há princípios que não devem ser ultrapassados”. Sobre lições a tirar do que se passou no domingo, a socialista que pertence à direção de Carneiro tira essencialmente uma: “A grande lição que é preciso tirar é que tem de haver equilíbrio e não pode haver aproveitamento, não pode valer tudo para ter votos”.

Por agora, o autarca de Loures já vai aproveitando internamente a vantagem que a maioria lhe deu. Na reunião da comissão política nacional desta terça-feira, ajustou contas com quem o criticou no partido nas duas polémicas que protagonizou. Dirigiu-se muito concreto a Porfírio Silva e a Elza Pais, segundo apurou o Observador, com queixas de falta de solidariedade e disparou até o seu número de telefone para que, no futuro, lhe possam ligar antes de falarem publicamente sobre as suas decisões. Também aproveitou o mesmo embalo e atirou-se ao resultado em Lisboa conseguido por Alexandra Leitão, outra crítica das suas posições polémicas, pedindo mesmo que tirasse ilações desses números. Ganhou potência, resta saber o que fará mais com ela.