Vladimir Putin pode estar prestes a avançar com um movimento arriscado, mas isso pode custar-lhe a tão desejada paz social que tem conseguido manter ao longo de mais quase quatro anos de guerra

A Rússia perdeu 281.550 soldados no campo de batalha na Ucrânia, entre mortos, feridos e desaparecidos, apenas nos primeiros oito meses deste ano, de acordo com um documento russo divulgado pelos serviços secretos ucranianos. Estes dados fazem do ano de 2025 o mais mortífero para a máquina de guerra de Vladimir Putin, mas um outro número começa a preocupar o Kremlin, que pode ver-se obrigado a tomar uma medida impopular que pode custar a paz social ao regime. 

“A Rússia terá aproximadamente 700 mil soldados na Ucrânia e o número de baixas ultrapassa um milhão. Se continuar a haver este tipo de fatalidades, continuará a ter um peso enorme para a sociedade russa e trará uma grande erosão para Vladimir Putin e para o seu aparelho político”, diz à CNN Portugal o tenente-general Rafael Martins. 

De acordo com o relatório, em apenas 243 dias, 86.744 militares russos foram mortos, 33.966 estão desaparecidos e 158.529 foram feridos em combate. Os dados apresentados contrariam o rácio entre mortos e feridos, que geralmente aproxima-se de 1 morto para cada três feridos. O relatório afirma que, devido à ausência de um sistema de evacuação de feridos, o número de mortos é invulgarmente elevado. 

“Isto indica um baixo nível de sobrevivência dos feridos, que são mal treinados em medicina táctica e geralmente são abandonados sem ajuda após lesão”, refere o documento.

Estes dados apontam para uma média de 35.193 baixas por mês para o lado russo, o que apresenta um dilema existencial para o esforço de guerra do Kremlin, numa altura em que o governo russo começa a ter dificuldades em encontrar o número necessário de militares para manter o ritmo das operações na linha da frente. Segundo o think tank de defesa americano Institute for the Study of War (ISW), a Rússia está a recrutar uma média de 31.600 militares por mês para o seu esforço de guerra. 

A diferença entre o número de novos soldados e as perdas no campo de batalha está a criar um saldo negativo de mais de 3.500 soldados por mês, que pode agravar-se com o tempo. Esta realidade está a obrigar a Rússia a aumentar os prémios de assinatura de contrato para atrair novos recrutas, com os soldados a receber um pagamento que pode atingir 3,2 milhões de rublos (aproximadamente 34.820 mil euros), um valor oito vezes superior ao salário anual médio. 

“[Putin] paga-lhes muitíssimo bem. Um soldado russo na frente de batalha ganha dez vez mais do que na Sibéria e recebe um bónus de dezenas de milhares de euros. Isto, para a Rússia, é uma fortuna. Isto garantiu-lhe paz social completa. Estas pessoas são voluntárias. Para o resto da população, elas estão lá porque querem”, explica à CNN Portugal Francisco Pereira Coutinho, especialista em direito internacional. 

Mas nem mesmo o aumento significativo dos pagamentos parece estar a produzir o efeito desejado. Empregados dos serviços de recrutamento russos que pagam os melhores benefícios relataram à imprensa local que não estão a conseguir aumentar o número de recrutas, nem mesmo com sucessivos aumentos de incentivos financeiros. Segundo eles, esta dificuldade surge porque quase todos aqueles que queriam “fazer dinheiro com a guerra” já se voluntariaram. Além disso, o número de voluntários com “idade avançada” e problemas crónicos de saúde está também a crescer. 

Com o modelo financeiro a demonstrar ser insuficiente, o Kremlin virou-se para a sua máquina de comunicação. Segundo o ISW, o Ministério da Defesa russo está a recorrer a anúncios enganosos para atrair recrutas. Um exemplo disso aconteceu durante as vésperas da cimeira do Alasca, que reuniu Donald Trump e Vladimir Putin. As autoridades começaram a dizer à população que a guerra estava prestes a acabar e para aproveitarem para “receber milhões antes da paz chegar”. 

Outras campanhas parecem focar-se em recrutar para posições de retaguarda, como motoristas ou técnicos. Além disso, há um aumento elevado da utilização de termos como “serviço seguro”, “unidades de retaguarda” ou “serviço fácil” ou longe da “linha da frente”. Mas nem isso parece ter sido suficiente para frente às enormes necessidades que surgem no campo de batalha, na Ucrânia. Além de contar com o apoio da Coreia do Norte e de Cuba, Moscovo tem recorrido ao recrutamento de cidadãos africanos e do Médio Oriente para fazer frente a esta escassez.

“Quedas no recrutamento, de tal forma que a Rússia não consegue substituir as perdas, podem forçar em parte o presidente russo, Vladimir Putin, a escolher entre conduzir uma mobilização da reserva involuntária, que Putin mostrou grande relutância em ordenar, ou ir para a mesa de negociações”, escrevem os analistas do ISW.

E o Kremlin parece estar a inclinar-se para a primeira opção. Na terça-feira, o parlamento russo aprovou um projeto de lei que permite ao presidente mobilizar reservistas em tempo de paz. Esta medida permite a Putin contornar o entrave legal de a invasão da Ucrânia não ser formalmente considerada na Rússia uma guerra, mas sim uma “operação militar especial”. 

O objetivo é poder ativar a enorme capacidade de mobilização russa, que conta com mais de dois milhões de reservistas, depois de Putin ter assinado um decreto para esse efeito em 2015. Segundo o presidente da comissão de defesa do parlamento russo, Andrei Kartapolov, a legislação vai permitir o envio de reservistas para o estrangeiro, “incluindo para as regiões ucranianas de Sumy e Kharkiv”.

De acordo com a nova legislação, os cidadãos inscritos na reserva de mobilização podem ser chamados para cumprir tarefas relacionadas com a defesa durante conflitos armados, operações antiterroristas ou quando as forças russas estão destacadas no estrangeiro. A chamada destes homens ficaria dependente de uma autorização direta do presidente Vladimir Putin.

“Esta lei pretende ser algo discreta, para não alarmar a sociedade russa. Por outro lado, pretende também reduzir aquilo que está a ser gasto com os atuais combatentes e também o reconhecimento de que este conflito está para durar ou até escalar”, considera o tenente-general Rafael Martins.

Mas se os esforços do Kremlin para atrair mais recrutas falhar, Putin pode ver-se mesmo obrigado a fazer uma nova ronda de mobilização, algo a que o presidente russo tem resistido devido à impopularidade da medida. Em setembro de 2022, quando um contra-ataque ucraniano na região de Kharkiv fez o Kremlin temer um colapso da frente, Putin ordenou a mobilização de 300 mil reservistas. No entanto, essa decisão levou quase 300 mil russos a fugir do país, temendo novas rondas de recrutamento. 

Ainda assim, Kiev teme as repercussões dessa decisão. Em setembro, o enigmático líder da espionagem ucraniana, Kyrylo Budanov, admitiu que essa decisão poderia criar uma “séria ameaça” à Ucrânia e que, apesar de “dolorosa” para a Rússia, a possibilidade era “realista”. 

“Putin teve uma jogada absolutamente genial ao recrutar voluntários. Mas há limites e o limite é orçamental. A Rússia esteve décadas a preparar-se para esta guerra e entrou para o conflito com os cofres cheios. Esses cofres já não estão como estavam. Se a guerra continuar por muito tempo, ele poderá ter de mudar de estratégia, mas isso poderá trazer-lhe problemas internos”, antecipa Francisco Pereira Coutinho.