
Uma tempestade fez dezenas de milhares de peixes fugirem dos viveiros onde habitavam no norte da Europa. Há possíveis complicações para todos os consumidores de peixe.
Quando a tempestade Amy atingiu as Terras Altas da Escócia no início de outubro, rasgou as redes marinhas de um viveiro de salmão, libertando cerca de 75.000 peixes para as águas abertas do Loch Linnhe.
A dimensão desta fuga é alarmante e surge num momento em que o salmão-do-Atlântico selvagem — já classificado como “em perigo” no Reino Unido — continua em declínio.
Para um animal tão central na ecologia, cultura e economia do Reino Unido, o incidente tem implicações sérias.
À primeira vista, pode até parecer uma boa notícia: milhares de peixes libertos do cativeiro, talvez até ajudando a reforçar as populações selvagens. Mas a realidade está longe de ser reconfortante.
Estes peixes não são salmões selvagens em nenhum sentido significativo. São animais altamente domesticados, selecionados ao longo de décadas por características que os tornam rentáveis em cativeiro — mas mal preparados para sobreviver no meio natural.
De peixe selvagem a gado aquático
A aquacultura — a criação de peixes e outras espécies aquáticas — tornou-se uma das formas de produção alimentar de crescimento mais rápido no mundo.
A espécie marinha de maior valor é o salmão-do-Atlântico, que representou 18% do valor total da produção aquícola marinha global em 2022. O Reino Unido é o terceiro maior produtor mundial, com quase toda a produção concentrada na costa da Escócia.
A piscicultura moderna de salmão envolve geralmente a criação de alevins em incubadoras de água doce, antes de serem transferidos para gaiolas ou jaulas no mar.
Cada exploração pode ter seis a dez redes de grandes dimensões, com até 200.000 peixes em cada uma.
As redes são abertas às correntes de maré, permitindo a entrada de água limpa e oxigenada e a saída dos resíduos. No entanto, isso também as torna vulneráveis a condições meteorológicas adversas.
Para reduzir o risco, os viveiros são instalados em regiões costeiras mais abrigadas, como fiordes ou lochs, mas essa proteção é limitada.
A tempestade Amy mostrou de forma clara essa vulnerabilidade.
Domesticados como ovelhas ou cães
A criação de salmão-do-Atlântico começou na década de 1970. Desde então, a espécie foi sujeita a intensa seleção artificial, tal como aconteceu com ovelhas, cães ou galinhas.
Os peixes foram escolhidos por crescimento mais rápido, maturação sexual tardia, resistência a doenças e outras características comercialmente desejáveis.
pós 15 gerações de seleção, estes salmões de viveiro estão entre as espécies de peixes mais domesticadas do mundo, já muito diferentes dos seus parentes selvagens. São geralmente maiores, amadurecem de forma diferente e alimentam-se de ração em pellets em vez de caçarem presas vivas — alterações que os tornam mais vulneráveis a predadores.
Alguns até apresentam características que os tornam menos atraentes para salmões selvagens como parceiros reprodutivos. Muitos não sobreviveriam muito tempo em ambiente natural.
O verdadeiro perigo: cruzamento com populações selvagens
O problema não é apenas os salmões de viveiro morrerem após escapar — mas o que acontece quando alguns não morrem. Estudos mostram que, em certos rios da Escócia e da Noruega, mais de 10% dos salmões capturados são de origem de viveiro, com números mais altos perto das zonas de piscicultura intensiva.
Embora estes peixes estejam mal adaptados ao ambiente natural, alguns conseguem sobreviver tempo suficiente para alcançar os rios e tentar reproduzir-se.
Quando se cruzam com salmões selvagens, a sua descendência herda uma mistura de características — nem totalmente selvagens, nem totalmente domesticadas — tornando-os menos aptos ao meio natural. Este processo, chamado introgressão genética, deteriora gradualmente a integridade genética das populações selvagens.
O momento torna este incidente ainda mais preocupante: é agora que os salmões selvagens regressam aos rios escoceses para desovar. O súbito afluxo de dezenas de milhares de peixes de viveiro aumenta o risco de cruzamentos e de danos genéticos a longo prazo.
Uma ameaça que pode afetar toda a espécie
A escala desta fuga é extraordinária. A população total estimada de salmão selvagem que regressa anualmente à Escócia é de cerca de 300.000 peixes. A libertação de 75.000 salmões de viveiro equivale a aproximadamente um quarto desse número.
Mesmo que apenas 1% dos fugitivos sobreviva e se reproduza, isso representaria cerca de 750 peixes a entrar nos rios e potencialmente a misturar-se com as populações selvagens.
Um relatório da Marine Scotland (2021) concluiu que rios próximos de viveiros estão em “condição muito fraca”, com provas de alterações genéticas significativas.
Preocupantemente, outros rios vizinhos, antes classificados como estando em “boa condição”, podem agora estar em risco.
Os salmões selvagens do Atlântico já enfrentam múltiplas ameaças causadas pelo ser humano: alterações climáticas, perda de habitat, poluição e espécies invasoras.
A poluição genética causada por peixes de viveiro fugitivos é mais um golpe — e reduz ainda mais a capacidade da espécie de resistir a outras pressões ambientais.
A fuga provocada pela tempestade Amy pode ter sido um único incidente, mas é sintomática de um problema mais vasto. À medida que as tempestades se tornam mais intensas devido às mudanças climáticas, a probabilidade de futuras fugas só tende a aumentar.
Sem regulamentação mais rigorosa, melhores medidas de contenção e monitorização genética eficaz das populações selvagens, estes acontecimentos poderão continuar a destruir o que resta do salmão selvagem no Reino Unido.