Um projeto-piloto desenvolvido pelo Hospital Alemão Oswaldo Cruz em parceria com o Ministério da Saúde está testando, em cidades de todas as regiões do País, uma intervenção que dá apoio psicológico e ensina estratégias de manejo do estresse a pessoas que cuidam de familiares com demência.
Esses cuidadores enfrentam diariamente um desafio complexo: além de assistirem ao declínio cognitivo e físico de um ente querido, ainda precisam dar conta das demandas diárias do paciente, como alimentação, medicação e banho, e lidar com situações muito peculiares do idoso com demência.
Nesse cenário, não é incomum que eles tenham que responder à mesma pergunta dezenas de vezes em poucos minutos ou acalmar o paciente diante de uma desorientação e agitação dentro da própria casa ou ao escurecer. Em alguns casos, o paciente pode até ficar agressivo ao não reconhecer o ambiente ou as pessoas com quem convive.
O projeto-piloto busca testar a viabilidade de levar ao Sistema Único de Saúde (SUS) um protocolo que, por meio de oito sessões semanais individuais, melhore a saúde mental e a qualidade de vida dos cuidadores e apresente a eles estratégias para lidar com a situação. “Ao longo das sessões, os cuidadores desenvolvem habilidades para lidar com os desafios emocionais e práticos do cuidado”, explica o médico psicogeriatra Lucas Martins Teixeira, pesquisador do Oswaldo Cruz.
Ele conta que, durante as sessões, os cuidadores são orientados a reconhecer e enfrentar gatilhos de estresse do dia a dia, reorganizar a rotina, lidar com comportamentos desafiadores da pessoa com demência, praticar técnicas de relaxamento e planejar o futuro.
Sem suporte adequado, cuidadores de pessoas com demência podem desenvolver problemas como depressão e ansiedade Foto: godfather/Adobe Stock
O projeto, batizado de Escada (Estratégias para Cuidadores em Demência), é uma adaptação do protocolo britânico Start, que reúne orientações baseadas em princípios cognitivo-comportamentais para ajudar os cuidadores familiares, que costumam ter sua saúde e necessidades negligenciadas diante do quadro de demência de seus parentes.
A iniciativa integra a segunda etapa do ReNaDe (Relatório Nacional sobre Demência no Brasil: Prevenir, Reconhecer e Cuidar), um projeto conduzido pelo Oswaldo Cruz no âmbito do Proadi-SUS (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde) que traz outras três iniciativas, uma focada na prevenção da demência, outra no combate ao subdiagnóstico e uma terceira que oferece terapia de estimulação cognitiva para pacientes com demência (leia mais abaixo).
O ReNaDe2 dá seguimento ao ReNaDe1, que, em 2023, apresentou o primeiro panorama nacional sobre a demência no Brasil. Segundo o hospital, a nova etapa vai além do mapeamento: testa a viabilidade de soluções práticas e cientificamente embasadas no contexto do SUS.
“O Brasil precisa se preparar para enfrentar os desafios que o envelhecimento acelerado da nossa população traz, entre eles a demência, uma das principais causas de perda de autonomia na velhice”, destaca Cleusa Ferri, psiquiatra, epidemiologista e pesquisadora do Oswaldo Cruz responsável pelo ReNaDe.
Ela lembra que a maior parte dos pacientes com demência são cuidados por familiares, em especial mulheres, que muitas vezes abandonam seu trabalho e rotina para se dedicar integralmente ao parente com a condição. “O projeto ressalta a importância do cuidador também se cuidar porque às vezes essas pessoas esquecem de si mesmas por conta da sobrecarga que têm no dia a dia com a pessoa com demência”, diz Cleusa.
Como são as sessões para cuidadores
Teixeira explica que as sessões são feitas na casa do cuidador por agentes comunitários de saúde (ACS) treinados pelos pesquisadores para a intervenção. Na primeira sessão, o cuidador é convidado a refletir sobre o que é a demência e como a sobrecarga pode impactar sua saúde.
De acordo com pesquisas prévias do ReNaDe, nem sempre os familiares entendem as consequências e a evolução da demência e têm dificuldade de compreender que alguns comportamentos dos idosos são causados pela doença e não apenas teimosia, por exemplo.
“Obter informações qualificadas sobre a condição permite corrigir eventuais concepções imprecisas, começar a perceber sintomas e desfazer mal entendidos”, diz o psicogeriatra.
Na segunda e terceira sessões, trabalha-se o reconhecimento de padrões de comportamento do idoso e do próprio cuidador, com ferramentas práticas para alterar reações negativas ou impulsivas diante de situações difíceis.
“É apresentado o conceito do ciclo gatilho-comportamento-reação: o cuidador é ensinado a registrar e reconhecer o que desencadeia o comportamento (gatilho) e o que ele ocasiona (reação). Pelo entendimento de que é possível melhorar um comportamento desafiador a partir da modificação dos gatilhos e das reações, planeja-se estratégias neste sentido, que são testadas e aprimoradas entre as sessões”, diz o pesquisador.
Isso vale para situações comuns como quando o paciente repete a mesma fala diversas vezes ou se nega a comer ou tomar banho, o que muitas vezes gera uma reação raivosa ou impaciente do cuidador.
Há sessões dedicadas também ao fortalecimento da comunicação, tanto com a pessoa com demência quanto com outros membros da família. “É estimulado que, sempre que possível, a função do cuidado seja compartilhada”, diz Teixeira.
Outra sessão busca promover a reintrodução de atividades prazerosas na rotina do cuidador. A ideia é resgatar pequenos prazeres que costumam ser abandonados, como ouvir música, cuidar de plantas ou ler, e mostrar que investir em si mesmo é parte do bom cuidado.
Há ainda uma sessão destinada ao planejamento do futuro, com a discussão de planos de contingência para situações críticas, considerando a característica progressiva da demência. São abordados ainda aspectos como outras opções de serviços para o cuidado, questões legais da demência e diretivas antecipadas de vontade.
“Ao final de cada sessão, apresenta-se, ainda, técnicas de relaxamento guiadas por arquivos de áudio disponibilizados juntos aos manuais do protocolo, com técnicas que envolvem exercícios de respiração, meditação e alongamento”, conta Teixeira.
O estudo de viabilidade do protocolo Escada foi iniciado no primeiro semestre deste ano e está programado para ocorrer em dez Estados brasileiros, dois em cada região do País. Até agora, o projeto já está em andamento em sete municípios: Vitória (ES), Manaus (AM), Chapecó (SC), Teresina (PI), Cuiabá (MT), Guarapuava (PR) e Benevides (PA). Trinta cuidadores familiares já estão recebendo as sessões e 78 agentes comunitários de saúde foram capacitados para a aplicação do protocolo.
A ideia é que, ao final do projeto, os resultados sejam analisados para considerar a implantação do protocolo de forma mais abrangente no SUS.
‘Demência adoece toda a família’
Para Naira Dutra Lemos, assistente social e coordenadora do Ambulatório para Cuidadores, da Unifesp, a demência é uma das condições com maior impacto sobre a família do doente, o que reforça a importância do suporte para o cuidador. “Eu costumo dizer que a demência não é uma doença só do paciente, é uma doença da família. A família toda adoece”, diz.
No ambulatório, vinculado à disciplina de geriatria e gerontologia da universidade, os cuidadores de pacientes atendidos na geriatria são convidados a fazer acompanhamento no serviço, que tem equipe multidisciplinar com médico, nutricionista, assistente social, fisioterapeuta, entre outros profissionais.
Pela sua experiência no serviço, Naira observa que, entre os cuidadores de pessoas com demência, o cansaço emocional supera o físico. “A responsabilidade do cuidador familiar, diferente do cuidador profissional, é ininterrupta. Ele dorme e acorda com aquilo. E ainda tem o envolvimento emocional por ser alguém da família dele.” Uma das consequências, diz ela, é o surgimento de problemas de saúde como depressão, ansiedade, insônia e hipertensão.
Entre as estratégias que recomenda aos cuidadores está evitar entrar em embate com o paciente com demência. Ela diz que discutir ou corrigir o paciente quando ele se confunde ou sofre lapsos de memória raramente funciona. “Evite enfrentar, tente mudar a conversa ou direcioná-la para outro lado.”
Outro ponto importante, diz a assistente social, é não tirar todas as atividades da pessoa com demência. “Muitas vezes, no intuito de proteger o paciente, o cuidador vai tirando tudo que é dele e ele fica sem saber o que fazer. Aí ele fica apático. Ninguém estimula. E o estímulo é muito importante.”
Ela relata o caso de uma paciente que havia sido costureira, e que encontrou conforto, nos momentos de confusão e agitação, na tarefa de separar botões, uma atividade simples, mas que resgatava parte de sua identidade.
Para o cuidador, resgatar pequenos momentos de prazer também é essencial. “Eu perguntei para uma cuidadora: o que a senhora gostaria de fazer? Ela disse: ‘Sair para tomar um sorvete’. Fiz um trato com ela de ir uma vez por semana”. Para isso, Naira e equipe combinaram com outro familiar que, semanalmente, ele estaria lá para cuidar da paciente enquanto a cuidadora principal sairia para esse pequeno momento de descanso.
Para Naira, esse gesto simples representava algo maior: “A sensação de poder fazer algo que ela desejava, que ela escolheu.”
Outros projetos do ReNaDe2
Além do projeto Escada, voltado ao bem-estar de cuidadores, o ReNaDe2 conduz outros três projetos.
A iniciativa Futuro em Mente atua no campo da prevenção dos fatores de risco modificáveis da demência, como hipertensão, diabetes, sedentarismo, baixa escolaridade, perda auditiva e isolamento social.
A proposta, segundo Cleusa, é mapear o que já é feito nas redes municipais, estaduais e federal para a prevenção dessas condições e, a partir disso, construir recomendações práticas. “Muita coisa que já se faz no SUS para doenças crônicas já é, na prática, prevenção da demência. A gente quer dar visibilidade a isso e propor melhorias”, explica a pesquisadora.
Segundo ela, o projeto deve culminar em uma oficina nacional com especialistas, gestores públicos e representantes da sociedade civil, prevista para 2026.
Já a frente REDe busca reduzir o subdiagnóstico da demência, estimado em 80% no Brasil. Para isso, promove treinamentos presenciais em Unidades Básicas de Saúde (UBS) com todos os profissionais — da limpeza à recepção, da enfermagem à gestão — e realiza eventos abertos à comunidade para aumentar o reconhecimento dos sinais iniciais da doença.
A intervenção já passou por cidades como Breves (PA), Bayeux (PB), Porto Velho (RO) e Campinas (SP), e mais sete municípios receberão o projeto até 2026.
A capacitação envolve ainda um curso virtual interativo e o uso de um fluxograma oficial do Ministério da Saúde para avaliação de casos suspeitos na atenção primária. “Treinamos toda a equipe da UBS, não só os profissionais de saúde. Trabalhamos a atitude, o acolhimento, o olhar, além da parte técnica”, diz Cleusa.
Outra frente em teste é a Terapia de Estimulação Cognitiva (CST), voltada a pessoas com demência leve a moderada. Aplicada em grupo por profissionais de saúde não médicos, como terapeutas ocupacionais ou psicólogos, a CST consiste em 14 sessões presenciais com atividades que estimulam memórias, interação social e funções cognitivas.
“Ela já tem evidência de eficácia no Reino Unido e foi incorporada pelo sistema de saúde britânico”, diz Cleusa. A viabilidade da CST está sendo testada em diferentes equipamentos do SUS, como equipes multiprofissionais da atenção primária (eMulti) e ambulatórios especializados.
Cleusa ressalta que, além dos benefícios cognitivos, a CST promove também melhora na qualidade de vida dos participantes. “Não é que a gente vai melhorar a cognição, mas é possível desacelerar o declínio e oferecer um ambiente de acolhimento. A pessoa se sente cuidada, sai de casa, encontra outras pessoas. Isso faz diferença”, afirma. A intervenção está em curso em municípios como Jaraguá do Sul (SC) e Boa Vista (RR), e será aplicada em mais três cidades até o fim do projeto.