Um dos mais misteriosos membros do grupo ancestral da humanidade tinha mãos muito parecidas com as nossas, mas que também contavam com características semelhantes às dos gorilas, afirma um novo estudo. Esse lado “gorilesco” das mãos da espécie Paranthropus boisei, aliás, encaixa-se bem com a estrutura da boca e do crânio da criatura, que lembra, em diversos aspectos, a dos maiores primatas atuais.
Publicados na revista científica Nature na última quarta-feira (15), os dados são importantes para compreender até que ponto formas antigas e muito divergentes do grupo dos hominínios, ao qual pertence o Homo sapiens, também eram capazes de fabricar e manipular instrumentos com precisão. A resposta curta para essa dúvida, a julgar pelas mãos do P. boisei, é que essa capacidade já estava presente, mas provavelmente com menos destreza “fina” do que a dos seres humanos modernos ou de seus parentes mais próximos, os neandertais.
Os ossos da mão da espécie têm idade estimada de pouco mais de 1,5 milhão de anos e foram achados no sítio de Koobi Fora, na margem oriental do lago Turkana (Quênia, África Oriental). O trabalho de análise dos fósseis foi coordenado por Carrie Mongle, da Universidade Stony Brook (Estados Unidos), e é assinado também por Meave Leakey e Louise Leakey, integrantes da família britânico-queniana que iniciou os estudos científicos sobre a evolução humana na região na primeira metade do século 20.
O gênero Paranthropus é relativamente bem conhecido dos paleoantropólogos, e há algumas mãos fossilizadas de hominínios associadas ao período em que o P. boisei viveu. Além disso, há muitas ferramentas muito simples de pedra, em geral com apenas uma ponta ou um gume, oriundas da região. O problema, porém, é que quase nenhuma das mãos fósseis têm associação clara com crânios e outras partes do esqueleto que permitam identificar, sem sombra de dúvida, a espécie a que pertenciam.
Eles lembram tanto os equivalentes nos gorilas-das-montanhas atuais que, se fossem achados em isolamento, provavelmente seriam identificados, de forma errônea, como os primeiros fósseis da mão de um gorila
Essa lacuna foi sanada com a nova descoberta, originalmente feita em escavações que aconteceram entre 2019 e 2021. Junto com fragmentos do crânio e do maxilar e alguns dentes da espécie, a equipe achou ossos de diversos dedos, entre os quais o polegar esquerdo, e também dos ossos da palma da mão.
A identificação da espécie deixa pouca margem para dúvidas por causa dos dentes molares enormes e da preservação da crista sagital, uma espécie de “moicano de osso” no alto do crânio. Essa protuberância servia como âncora para os poderosos músculos mastigatórios do P. boisei, fato que, junto com a dentição, indica que o primata se dedicava à mastigação de alimentos duros e fibrosos, a exemplo da dieta vegetariana dos gorilas modernos.
Do lado da semelhança com seres humanos, a mão da espécie tem proporções gerais, no que diz respeito à estrutura e ausência de curvatura dos dedos, que lembram bastante as nossas. Ela conta com um polegar proporcionalmente comprido e robusto –o dos outros primatas costuma ser bastante curto em relação aos demais componentes da mão– e um dedo mínimo bastante móvel.
No entanto, a robustez de outros ossos da mão traz semelhanças com os dos gorilas. É possível perceber isso pelo exame de ranhuras nas laterais dos dedos e pelo formato do chamado quinto metacarpo, osso que fica na palma da mão, na base do dedo mínimo.
“Eles lembram tanto os equivalentes nos gorilas-das-montanhas atuais que, se fossem achados em isolamento, provavelmente seriam identificados, de forma errônea, como os primeiros fósseis da mão de um gorila”, escreve a dupla de pesquisadoras Tracy Kivell e Samar Syeda, respectivamente do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionista, na Alemanha, e do Museu Americano de História Natural. Ambas comentaram o novo estudo a pedido da Nature em texto de análise que acompanha a publicação.
Levando em conta todos esses detalhes, e também os dos pés da espécie, Carrie Mongle e seus colegas concluem que tanto a locomoção do gênero Paranthropus quanto sua capacidade de manipular objetos tinham diversas semelhanças com as do gênero Homo, o dos seres humanos modernos.
Entretanto, os traços mais semelhantes aos dos gorilas sugerem uma capacidade de agarrar muito poderosa, provavelmente útil para que o primata desbastasse com as mãos grandes talos e folhas que faziam parte de sua alimentação, tal como acontece com os grandes símios modernos. O lado ruim dessa “pegada” poderosa, porém, é que talvez faltasse à espécie a mesma capacidade que temos hoje de manipular delicadamente objetos menores, o que eles designam em inglês como “precision pinch” (algo como “movimento de pinça de precisão”).
Uma interpretação possível para esses fatos se encaixa bem com as trajetórias evolutivas divergentes dos gêneros Paranthropus e Homo, escrevem os autores do estudo. Enquanto os membros do nosso gênero desenvolveram um uso ainda mais intensivo de ferramentas, o Paranthropus teria se especializado no aproveitamento da matéria vegetal mais dura, ainda que sem abandonar os instrumentos de pedra.