Não foi um “não!, não!, não!” definitivo, muito menos lendário, mas polémico ao ponto de abrir um aceso debate no Reino Unido. “O V&A educadamente recusou a oferta de roupas da baronesa Thatcher, sentindo que esses registos da história política da Grã-Bretanha seriam mais adequados a outra coleção que se concentraria no seu valor histórico social intrínseco”, lia-se no The Telegraph. Em 2015, dois anos após a morte da antiga primeira-ministra britânica, um porta-voz do museu londrino reagia à proposta dos herdeiros da Dama de Ferro. Aparentemente, o guarda-roupa da líder que usou os seus looks como ferramenta estratégica, que fez do azul um absoluto pantone político, não interessava para a posteridade.

“Ela sempre foi muito consciente da sua aparência,” comentou em dezembro desse ano Adrian Hume-Sayer, chefe de vendas da Christie’s. “Era sempre algo de que se orgulhava muito.”. O espólio da baronesa acabaria por ser leiloado. Em setembro de 2016, depois da fúria Tory e de inúmeros artigos de jornal, o Victoria & Albert emendava a mão e anunciava ter reforçado o seu acervo com peças doadas por Mark e Carol Thatcher, os herdeiros da primeira-ministra. Sacudiu a polémica garantindo que anteriormente não houvera qualquer oferta formal do espólio. E investia à séria nos elogios. Claire Wilcox, curadora sénior de moda da instituição, admitia que o presente constituiu “um registo do guarda-roupa de trabalho de uma das mulheres mais influentes e poderosas do século XX, e formará uma adição importante à coleção de moda do museu”. Mais: “A baronesa Thatcher era uma figura política internacionalmente reconhecida que usava seu guarda-roupa para projetar o poder e inspirar confiança.” Mas certamente muito mais poderia ter ingressado na coleção, que se contentou com seis conjuntos de Margaret e um chapéu.

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O pied-de-poule, os anéis, as pérolas, o “olhar de aço” que passou à história e ainda o cabelo imperturbável

Um século depois do nascimento da protagonista (1925-2013), a montra é bem mais vasta, e cada escolha ilustra uma ponderação instrumental. A firmeza do perfil político, e do aspeto de boa parte dos seus power suits, foi amaciada por detalhes ultra femininos, como as blusas de laçada. Da mesma forma que Isabel II teve os seus imprescindíveis de estilo, Thatcher foi outra das figuras públicas de alto perfil a fazer das pérolas um acessório-chave. E joias como os anéis ou a pregadeira em forma de flor, uma peça georgiana de diamantes do joalheiro londrino S.J.Phillips, acompanharam-na ao longo de anos. Também os lenços na cabeça, visíveis em imagens históricas como o dia em que se enfiou de gabardine num tanque em solo alemão, em 1986. Margaret ia juntando todas estas peças enquanto o punk e os seus códigos estalavam nas ruas e a desconstrução estava ao virar de cada esquina. Ao cair dos anos 70, Vivienne Westwood e Malcolm McLaren reinventavam a sua boutique em Chelsea. De certa forma, Thatcher forjava a sua própria revolução num Parlamento cheio de fatos cinzentos, azuis escuros e gravatas. Basta pensar no conjunto amarelo abelha, com fileira de botões ao estilo militar, que vestiu em 1975, no congresso do Partido Conservador.

A peça em questão fez parte dos lotes leiloados pela Christie’s, em 2015, após a morte da antiga primeira-ministra

Recuando no tempo, conservador não será o melhor adjetivo para classificar o vestido de noiva: em 1951, para o enlace com Denis Thatcher, surgiu em veludo azul, com o tom a dar o mote para o que aí viria. A ausência do branco justificava-se: Margaret estava a casar-se com um divorciado, pelo que a prerrogativa ficava interdita. De qualquer forma, Constance Gowns, a autora do vestido, encarregou-se de reforçar o glamour da jovem, que usou ainda um chapéu.

Os chapéus foram aliás outra peça relevante no guarda-roupa, ainda que muitas das escolhas saídas dos anos 70 tenham envelhecido mal. Através das suas performances públicas e privadas, provou como a nano política do vestuário se traduziu na macro política do poder. Fatos de cor sólida, sim, tweed e outras referências britânicas, mas também muitos vestidos, que tornavam a silhueta fluída quando necessário. E que outra figura polícia imaginaríamos sentada numa cafetaria da popular cadeia de roupa Marks& Spencer, bebericando chá com duas funcionárias, que não Margaret Thatcher?

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No dia do seu casamento com Denis

A curadoria não impediu o estereótipo. Recorrentemente, a avaliação de uma mulher na política britânica passa pela sua imagem, e não é preciso recuar à era Thatcher. A secretária trabalhista Jacqui Smith foi criticada em 2007 por usar um top com uma decote “muito revelador” no parlamento. Em 2012, a conservadora Louise Mensch exaltou-se com a imprensa, que insistia em saber se ela tinha feito algum plástica no rosto. Em 2015, a candidata à liderança do Labour Liz Kendall insurgia-se com a descrição que obtivera nos jornais, “uma morena elegante”. E quem não se lembra das ‘Blair’s Babes’ ou ‘Cameron’s Cuties’? Margaret sabia que limitar o risco era não só desejável como essencial. E talvez o retrato mais na mouche tenha vindo do estrangeiro. “Ela tem os olhos de Calígula e a boca de Marilyn Monroe”, ilustrou a certa altura o antigo presidente francês Francois Mitterrand , decifrando o carisma. Do ponto de vista doméstico, era depreciativamente classificada de “bag lady” (a imagem da sem abrigo carregada com sacos pelas ruas). Certo é que poucos ou nenhuns acessórios terão tido uma função tão política quanto a sua carteira de mão, fosse ela preta ou em pele crocodilo.

Em homenagem à outrora primeira-ministra, James Baker, antigo secretário de Estado, descreveu a “doutrina Thatcher”:

– “Primeiro, decida o que é certo, mesmo que nem sempre seja conveniente.
– “Em segundo lugar, deixe as pessoas saberem o que é certo, dê às pessoas uma direção sólida, confie nelas — mais tarde ou mais cedo elas reconhecerão o que é certo.
– “Terceiro, seja persistente; não desista e não desista.
– “Quarta e finalmente, quando as negociações pararem, vá à sua mala! A solução está sempre lá, geralmente escrita num pequeno pedaço de papel escondido lá no fundo.”

A carteira de mão foi um ícone de uma era e uma arma empunhada contra oponentes ou ministros num dia mau, que se iria tornar rapidamente pior. A forma como a primeira-ministra usava, manuseava ou mencionava este acessório desassossegava os mais prevenidos. “To be handbagged” tornou-se mesmo uma expressão cunhada no Dicionário de Inglês Conciso Oxford e pressupunha que alguém estava a um passo de receber um tratamento implacável por parte de Thatcher. Se a carteira de uma senhora é já por si um mistério, e o seu conteúdo capaz de perturbar os mais fleumáticos, a de uma dama de ferro tinha tudo para ser ainda mais insondável. Antigo secretário de gabinete, Lord Robert Armstrong nunca testemunhou nenhum “uso físico” da carteira, e nem era o que saía dela que mais o atormentava. “Eu estava mais preocupado com o que entrava na mala. Às vezes, documentos altamente confidenciais entravam na mala e saíam do sistema oficial”, descreveu.