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Na quente costa leste da Flórida, uma equipa de cientistas deparou-se com uma revelação tão incomum quanto perturbadora: os cérebros dos golfinhos-roazes (Tursiops truncatus) encalhados na Indian River Lagoon apresentam danos comparáveis aos sofridos por um ser humano com Alzheimer. E não é um caso isolado.
O culpado, invisível e voraz, agita-se nas águas: proliferação de algas tóxicas, acelerada pelas alterações climáticas, capazes de alterar não só a vida marinha, mas também (talvez) o nosso próprio destino.
Durante quase dez anos, investigadores da Universidade de Miami analisaram os tecidos cerebrais de 20 golfinhos que morreram nesse estuário costeiro, uma região onde a temperatura da água e a poluição por nutrientes criaram um caldo de cultura ideal para cianobactérias e microalgas tóxicas.
Aí, os cientistas identificaram níveis alarmantes de uma neurotoxina: 2,4-diaminobutírico (2,4-DAB), um composto natural produzido por certas algas que, ao acumular-se no corpo dos golfinhos, causou danos estruturais e genéticos nos seus cérebros. Em alguns casos, os níveis eram até 2.900 vezes mais elevados nos meses quentes em comparação com outras estações.
Semelhança com a doença de Alzheimer
Além da toxicidade evidente, o que deixou os investigadores sem fôlego foi a semelhança molecular com a doença de Alzheimer humana. Ao analisar o transcriptoma cerebral (ou seja, os genes que se expressam activamente no cérebro), descobriram um padrão preocupante: mais de 500 genes alterados, muitos deles também afectados em pacientes humanos com Alzheimer.
Os genes relacionados com o neurotransmissor GABA, vital para a comunicação neuronal, estavam comprometidos. Outros, que normalmente protegem a barreira hematoencefálica, mostravam sinais de enfraquecimento.
Além disso, os cientistas detectaram um aumento na actividade de genes associados à formação de proteínas neurotóxicas como beta-amilóide, tau e TDP-43 (as três principais marcas patológicas do Alzheimer humano). O paralelismo não era casual: o cérebro desses golfinhos havia começado a falar a mesma linguagem de deterioração que conhecemos nas nossas próprias espécies mais vulneráveis.
A neurotoxina 2,4-DAB
A descoberta é um alerta que ultrapassa as fronteiras da biologia marinha. A neurotoxina 2,4-DAB, já conhecida por causar efeitos no sistema nervoso, agora demonstra ser perigosa mesmo em exposições prolongadas e moderadas, não apenas em doses agudas. Por outras palavras, cada Verão com algas tóxicas deixava uma marca invisível, mas duradoura, no cérebro dos golfinhos. A cada estação quente, as mutações genéticas acumulavam-se, como camadas geológicas de danos irreparáveis.

Entre os genes mais alterados destaca-se o APOE, considerado um dos principais factores de risco para o Alzheimer em humanos. Em alguns exemplares marinhos, a sua actividade aumentou até 6,5 vezes. Outros, como o NRG3, fundamental na formação de sinapses, viram a sua actividade cair drasticamente. E genes que regulam a inflamação e a morte celular, como o TNFRSF25, foram activados descontroladamente.
O mais preocupante, no entanto, foi a descoberta de que os danos eram cumulativos. Quanto mais verões quentes e com proliferação de algas um golfinho tinha vivido, mais profundos eram os danos genéticos observados nos seus cérebros.
Pixabay
Os golfinhos-roazes são reconhecidos como o segundo animal mais inteligente do planeta, superando até mesmo os grandes símios.
E em humanos?
Os golfinhos-roazes são reconhecidos como o segundo animal mais inteligente do planeta, superando até mesmo os grandes símios. O seu cérebro, de grande tamanho em relaç��o ao corpo e mais volumoso que o humano, sustenta uma mente capaz de se reconhecer num espelho, aprender linguagens gestuais e comunicar-se através de um complexo sistema de estalos e assobios. Além disso, algumas fêmeas usam esponjas para proteger o focinho enquanto procuram alimento, um comportamento que aprendem com as suas mães e que revela a existência de uma forma rudimentar de cultura.
Se as proliferações de algas tóxicas se antecipam, prolongam e intensificam e, com elas, os riscos para todos os organismos que dependem da água se multiplicam, isso inclui também os humanos?
Os cientistas salientam que ainda não se pode afirmar com certeza que a toxina 2,4-DAB cause Alzheimer na nossa espécie. Mas o espelho molecular que os golfinhos oferecem obriga-nos a olhar com atenção. Se eles, aqui uma espécie de “canário na mina”, estão a mostrar sinais de uma doença que acreditamos ser exclusiva da nossa velhice, talvez seja hora de ouvir o mar. Porque o que afecta o oceano não fica no oceano.