O contexto e o desvio da atenção do que realmente é problema
Durante os últimos dias, tem-se falado imenso de burcas, Islamismo e o preconceito contra a religião. Relembro que a proposta aprovada esta sexta-feira, embora proíba “apenas o uso de roupas destinadas a ocultar o rosto em espaços públicos em Portugal” — ou seja, a burca e o niqab —, pode marcar um início de luta contra o Islamismo que contraria, a meu ver, o direito à liberdade religiosa (e reforço aqui a palavra “liberdade”, cujo contexto será explanado no decorrer deste artigo). Segundo a lei aprovada, o objetivo será proibir o uso “de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto”. Ora, mesmo não sendo explícito, quem pensa consegue entender a quem se destina. Aliás, o próprio imã da Mesquita Central de Lisboa acusou os políticos responsáveis pela aprovação desta lei de “taparem os olhos aos portugueses”, já que estão a desviar a resolução de problemas reais do país.
A herança familiar religiosa e o livre-arbítrio
Acharmos que a nossa cultura é a certa e a dos outros é errada é um tipo de raciocínio que tem tanto de falta de empatia como de colonialista: é tecer juízos de valor sem conhecimento de causa.
Quem construiu a lei e aprovou a lei consultou a comunidade muçulmana em Portugal? Ouviu as mulheres muçulmanas? Preocupou-se em perceber as suas tradições? Isto não quer dizer que eu seja a favor ou contra o uso de burcas, porque, afinal, não sei nada sobre o que é ser-se muçulmana, mas sei o que é nascer com uma herança familiar religiosa.
(Claro que quando estamos a falar de tradições culturais há que considerar que há as que são nocivas, como acontece no caso da Mutilação Genital Feminina e da tourada — não equiparando as situações, são apenas dois exemplos de tradições nocivas.)
Quando eu era criança, tendo crescido no seio de uma família tradicional e católica, fazia muitas questões sobre religião à minha mãe, que me respondia sempre sem rodeios. Lembro-me nitidamente de ela me ter dito certa vez: “Tu és católica, porque nasceste numa família católica. Se tivesses nascido numa família muçulmana, serias muçulmana.” Esta resposta ficou-me bem gravada na memória, porque realmente põe em cima da mesa a carta da religião e a carta do livre-arbítrio: seremos mesmo livres na nossa escolha quanto à religião, ou haverá sempre algum tipo de coerção envolvida? Seja esta vinda da família ou do meio em que nos inserimos socialmente. Ora, não vou apresentar uma resposta para esta indagação, mas afirmo que proibir alguém de professar a sua fé de forma não violenta é tão errado como obrigar alguém a professá-la de uma forma específica; e depreender que algo não está correto sem realmente procurar entender a sua prática, também me parece no mínimo redutor e injusto.
Olhemos, por exemplo, para o testemunho de Djelma Fati, jornalista, a viver em Portugal há cerca de três anos, que afirma que usa de livre vontade o hijab. Para Djelma, o hijab “não representa nenhuma opressão nem subjugação da mulher muçulmana”, mas antes uma forma das mulheres muçulmanas “mostrarem modéstia e a castidade”. Se a mulher livre de expressar a sua opinião, escolhe, e repito, escolhe, usar hijab (lenço que cobre as orelhas, o cabelo e o pescoço), quem sou eu para dizer se oprime as mulheres ou não? É tão errado proibir como obrigar ao uso, pois a questão aqui é a autonomia corporal e a liberdade de escolha.
Considerando que pode haver realmente mulheres obrigadas a usar sempre burca, esta lei agora aprovada ainda as vai isolar mais, pois poderão não ter liberdade para sair de casa, fazendo-as mais propensas a ser vítimas de violência doméstica, como afirma também Paula Cosme Pinto. (Além disso, falando em crimes, já que é comum falar-se da questão da segurança pública quando se aborda a questão do uso de burcas, pedia que me enviassem os dados de crimes em Portugal cometidos por pessoas a usar burca.)
A jornalista afirma, ainda, que a aprovação desta lei, na sua opinião, pode mesmo levar a que os muçulmanos se possam ver “obrigados a deixar o país ou arranjar outra forma de continuar a viver”. Ora, tendo em conta a Islamofobia típica das forças de direita, não será mesmo isso que eles querem? Esta lei aprovada pode, inclusive, marcar o início explícito de uma luta xenófoba sobre quem não tem a herança cultural católica deste país que se diz, falaciosamente, laico.
Quando a discussão sobre burcas deturpa o foco dos direitos das mulheres em Portugal
Quando se aborda a questão de tapar o rosto, quem não cresceu com a herança cultural do Islamismo, muitas vezes acaba por tecer comentários que acabam sempre no mesmo tópico: a liberdade das mulheres e os direitos das mulheres.
Do meu ponto de vista, há que ter em conta que as pessoas crescem em famílias de quem herdam uma tradição religiosa, ou a falta dela. Cabe a cada pessoa continuar com essa tradição, ressignificá-la ou quebrá-la por completo. Cabe a todas as pessoas que estão no poder garantir que há liberdade para as três opções. Por exemplo, a tradição católica dita que o sacramento do batismo deve ser realizado em bebé, ou seja, as pessoas bebés, sem o seu consentimento, são iniciadas num caminho católico, quer o queiram depois prosseguir ou não. Segundo a doutrina católica, as pessoas também são convidadas à castidade, à caridade, à modéstia. Ora, a forma de professar a Fé da Igreja Católica e do Islão são diferentes, embora se toquem em muitas questões. A grande, enorme, diferença, é que atualmente não há um movimento político que tenha pegado na doutrina católica e a tenha deturpado ao extremo de forma a controlar as mulheres, como os Talibã fizeram com a doutrina muçulmana — que já nada tem a ver com religião, mas antes com controlo
Tendo eu nascido no seio de uma família de tradição católica, doutrina que me traumatizou de diferentes formas no meu crescimento, posso afirmar que, a meu ver, todas as religiões têm no seu centro uma questão de controlo moral da população, a qual me faz imensa confusão. Por essa razão, ressignifiquei a minha Fé e separo-a bem da instituição da Igreja. Mesmo assim, pergunto-me se sequer a teria se não tivesse uma herança familiar religiosa. Se por um lado tenho noção da terapia que precisei para me libertar da doutrina da culpa católica, por outro lado também sei a importância do livre-arbítrio neste caminho da Fé, da religião, e de como a professar.
Voltando ao Islamismo e da forma como os muçulmanos professam a sua Fé, quando a discussão do uso das burcas em Portugal se centrar nos direitos das mulheres, convido a que se olhe para os dados sobre a violência que realmente afetam as mulheres em Portugal.
Quando a discussão sobre burcas deturpa o foco dos direitos das mulheres em Portugal
Olhemos efetivamente para o panorama nacional da segurança das mulheres em Portugal. Segundo o Portal da Violência da CIG, em 2025, no primeiro trimestre, houve 7056 casos reportados de violência doméstica, e no segundo trimestre houve 7713. No último ano, foram reportados 30 086 casos (já para não falar daqueles de que não há registo). Quanto a vítimas mortais de violência, nos primeiros dois trimestres deste ano, 11 mulheres e 2 homens foram assassinados. Em 2024, há registo de homicídio de 19 mulheres e 3 homens.
Quanto à segurança e saúde das mulheres grávidas, só neste ano de 2025 já nasceram 57 bebés em ambulâncias, principalmente na margem Sul do Tejo, devido a urgências fechadas. Isto, sem contar com agrávida que teve o seu bebé no chão das urgências de Gaia e a mulher que deu à luz no passeio da rua do Carregado por falta de acompanhamento médico devido. Agora, pergunto-vos, o problema deste país em relação aos direitos das mulheres, é mesmo a burca? Não me parece. Aliás, tendo em conta que a força política vigente, supostamente, não se importa com as minorias de poder, o facto de se preocupar tanto com uma fatia tão, mas tão, residual de mulheres que usam burca em Portugal, parece-me de uma moral questionável. Se se preocupam tanto com as mulheres do país, onde estão os reforços dos programas estatais que se dedicam a criar mecanismos para diminuir a violência doméstica e os femicídios? Onde estão as propostas cativantes para os profissionais de saúde se dedicarem ao SNS? Onde estão os esforços por garantir urgências obstétricas abertas em todo o país?
Se querem realmente defender os direitos das mulheres, observem o país à vossa volta. A conversa não deveria ser sobre burcas (de tão raro uso em Portugal), mas sobre os dados oficiais da violência contra mulheres em Portugal.