O Gabinete aponta especificamente várias falhas no processo de
aquisição, aceitação e instalação do cabo pela Carris.
“A utilização de cabos multiplamente desconformes com as especificações e
restrições de utilização deveu-se a diversas falhas acumuladas no seu
processo de aquisição, aceitação e aplicação pela CCFL (Companhia Carris
de Ferro de Lisboa, E.M, S.A), cujos mecanismos organizacionais de
controlo interno não foram suficientes ou adequados para prevenir e
detetar tais falhas”, refere.
O relatório revela que o tipo de cabo, utilizado desde 2022,
não está certificado para instalações de transporte de pessoas, nem é
adequado ao tipo de sistema tanto do ascensor da Glória como do do
Lavra, que tem instalado o mesmo tipo de cabo.
O gabinete indica, apesar de tudo, que “cabos iguais estiveram em uso durante 601 dias no Ascensor da Glória (e 606 dias no Ascensor do Lavra), sem incidentes”, concluindo que, “por esse motivo não é possível neste momento afirmar se as desconformidades na utilização do cabo são ou não relevantes para o acidente“.
Acescenta ainda que, “neste momento, não se pode afirmar se interveio, ou que intervenção teve, a utilização deste tipo de cabo na rotura ocorrida aos 337 dias de utilização, sendo certo para a investigação que houve outros fatores que tiveram forçosamente de intervir“.
O documento, “essencialmente factual”, foi publicado no final do prazo de 45 dias estabelecido para apresentar os primeiros resultados da sua investigação.
Reavaliação dos ascensores
O gabinete recomenda à Carris que não reative os ascensores de Lisboa “sem uma reavaliação por entidade especializada”, e ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) que implemente um quadro regulamentar apropriado.
Especificamente, o GPIAAF recomenda à Carris “que não reative os ascensores sem uma reavaliação, por uma entidade especializada em funiculares, das fixações dos cabos e dos travões, em linha com o normativo europeu nesta matéria, respeitando a proteção histórica daqueles transportes, mas sem prejuízo da segurança”.
E aponta a necessidade da Carris fazer “uma reavaliação e revisão do seu sistema de controlo interno, nomeadamente no que respeita aos processos de especificação, aquisição, receção e aplicação de componentes críticos para a segurança dos veículos.
O GPIAAF recomenda ainda à Carris a “clarificação junto do prestador de serviços de manutenção das obrigações contratuais e exercício de uma efetiva fiscalização e controlo sobre essas obrigações, a nível de gestão da manutenção, sua execução e controlo da qualidade em conformidade com o normativo aplicável”.
O relatório indica que as investigações vão prosseguir e que um relatório final será publicado até se completar um ano do acidente.
Falha do sistema de emergência
Na primeira nota informativa, publicada três dias depois do acidente, ficou descrito que o cabo que unia as duas cabines cedeu. E que, apesar do acionamento dos freios e do sistema de emergência, a redundância não conseguiu impedir as tragédia.
O acidente no elevador da Glória matou 16 pessoas.
O relatório preliminar agora publicado, após investigação do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários, comprova a conclusão inicial, referindo que “o cabo de tração que liga as duas cabinas rompeu-se dentro do destorcedor do trambolho superior, a poucos
centímetros da sua pinha de amarração”.
“À data do acidente tinha 337 dias de utilização”, acrescenta.
Indica igualmente que “o sistema de frenagem das cabinas não foi eficaz para as imobilizar, apesar de na cabina 1 todos os existentes, automáticos e manuais, terem sido aplicados”.
“Mesmo entre os técnicos mais antigos ainda ao serviço, não há atualmente memória na CCFL de alguma vez ter sido testado o freio de emergência para a situação de falha no cabo”. Nem “se conhecem cálculos do freio dos sistemas de freio das cabinas”.
“A informação histórica a que foi possível aceder sugere que o sistema de freio dos veículos foi modificado algumas décadas após a eletrificação do Ascensor, com diminuição das suas capacidades. Há também indícios de que o peso das cabinas aumentou de forma não negligenciável desde o momento da eletrificação, existindo indicações díspares quanto ao peso atual”, acrescenta o documento.
Entre os técnicos, existia a perceção que “a segurança do sistema dependia inteiramente do cabo e que o sistema de freio não era eficaz”.
Responsabilidade da Carris
Para o GPIAAF, a Carris detém a responsabilidade exclusiva pela manutenção do elevador. Aponta contudo faltas de enquadramento legal para as operações de inspeção e de “competência dos técnicos para detetar falhas ou denunciar a execução de trabalhos fora das normas padronizadas”.
Sublinhando que “os aspetos de segurança da operação de ambos os
ascensores [da Glória e do Lavra] encontravam-se à exclusiva
responsabilidade da CCFL enquanto entidade operadora”, o documento
lembra a falta de enquadramento legislativo sobre a manutenção de ambos
os Elevadores, classificados como “monumentos de interesse histórico”.
Os ascensores estavam entregues à CCFL “sem estarem supervisionados por qualquer entidade independente, pública ou privada, e sem um enquadramento legal efetivo para a sua operação enquanto não fosse introduzida nenhuma alteração significativa na sua infraestrutura e subsistemas”, refere o gabinete.
“A utilização de um novo tipo de cabo em 2022 poderia ser considerada uma alteração significativa de um dos seus subsistemas. No entanto (…) essa alteração foi feita pela CCFL de forma inadvertida e sem consciência de o ser”, sustenta a investigação.
Refere
ainda que ambos os elevadores são “de uma variante muito rara, se não mesmo única, do
tipo designado na literatura especializada por funicular automotor”.
Apesar disso, acrescenta, “nada impedia que lhe fossem aplicadas as mesmas regras das demais instalações, com as devidas adaptações às suas especificidades, incluindo de supervisão”.
A investigação concluiu ainda que “a manutenção e as condições de segurança dos elétricos, históricos, modernizados ou modernos que circulam nos arruamentos públicos em comum com veículos rodoviários, quer na sua entrada ao serviço, quer durante a sua vida, não estão, em Portugal e conforme declarado pelo IMT, sujeitas ao cumprimento de quaisquer regras que não as definidas pela própria Empresa, nem, principalmente, a qualquer tipo de supervisão independente“.
“A situação em Portugal contrasta flagrantemente com a realidade” noutros Estados que têm colaborado com a investigação do gabinete. Nestes, “a generalidade dos funiculares está sujeita ao cumprimento de regras técnicas e a supervisão periódica por parte de autoridades nacionais ou regionais, independentemente da data da sua entrada ao serviço ou interesse histórico”, aponta ainda o GPIAAF.
A manutenção do Elevador
O GPIAAF sublinha ainda dificuldades de análise ao cabo em uso, referindo que “a zona onde o cabo rompeu não era passível de inspeção visual sem desmontagem do destorcedor do trambolho superior”.
Uma circunstância que levava os técnicos da Carris a basear a recomendação, para a substituição do cabo, no número de dias de utilização.
O relatório refere mesmo que, “entre diversos técnicos e trabalhadores da CCFL ligados aos ascensores havia a perceção de que a segurança do sistema dependia inteiramente do cabo e que o sistema de freio não era eficaz para imobilizar as cabinas sem o cabo“.
“Por este motivo”, prosseguem as conclusões preliminares, “havia um elevado cuidado no controlo do cabo, nomeadamente limitando a sua utilização a 600 dias, muito abaixo da duração expectável para aquele componente. Mas esta perceção nunca se materializou organizacionalmente numa reavaliação das condições de segurança do sistema”.
“A CCFL tem subcontratada a manutenção dos ascensores a um prestador de serviços, sendo que o atual assegura a manutenção desde 2019”, aponta a investigação e que, “os trabalhadores do prestador de serviços agem essencialmente como colaboradores da CCFL, sendo formados no trabalho e executando as intervenções sob as orientações diretas da fiscalização daquela empresa”.
A execução dos trabalhos era contudo efetuada “sem supervisão” e existindo “evidências de que tarefas de manutenção registadas como cumpridas nem sempre correspondem às tarefas efetivamente realizadas, bem como de serem executadas tarefas críticas para a segurança de forma não padronizada, com parâmetros de execução e validação díspares”.