ANÁLISE || “Trump tem relações próximas com Orbán e Putin tem relações construtivas com Orbán” – este é o pretexto para ser a Hungria o palco de um encontro delicado para os demais países da UE. E delicado arrisca ser um eufemismo

Algures durante as próximas duas semanas, Donald Trump e Vladimir Putin devem encontrar-se para discutir a paz na Ucrânia e o local mais provável parece ser Budapeste, precisamente no centro da Europa. Para chegar a Budapeste, o presidente russo tem de atravessar o espaço aéreo de mais do que um país da União Europeia e da NATO – e isso levanta pelo menos dois problemas.

Primeiro, a proibição de entrada de aeronaves russas no espaço aéreo da União Europeia (UE), criada logo nos primeiros pacotes de sanções; depois há o mandado de captura do Tribunal Penal Internacional contra Putin. Para Manuel Serrano, especialista em assuntos europeus e que já esteve na Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia, esta situação tem várias camadas de análise mas há uma muito simples: “É uma humilhação diplomática da Europa, uma menorização da Europa e mais uma manobra de Vladimir Putin” – que apenas é possível graças à “conivência de Vikto Orbán e dos idiotas úteis do Kremlin no seio do Conselho Europeu – como Robert Fico, da Eslováquia, e muito provavelmente virá a ser Andrej Babiš, da Chéquia”.

“Isto vai contra tudo o que a União Europeia e os Estados-membros têm defendido. Ao criar uma execção para Putin, a União Europeia estará a corroer a sua credibilidade jurídica, a coesão das políticas europeias. Por muito que Trump venha a tentar vender esta lógica de que isto é uma cimeira para a paz e estabilidade, o que isto consolidaria realmente é uma divisão da Europa neste caso, do mundo em esferas de influência. É uma situação em que Vladimir Putin se reúne com Donald Trump e decidem o que é que vai acontecer com a Ucrânia – e a Europa tem mas é de aceitar e não dizer nada”, resume Manuel Serrano, também comentador da CNN Portugal.

O Kremlin veio explicar esta segunda-feira porque é que tanto a Rússia como os EUA consideram que a Hungria é o ponto do globo ideal para discutir um eventual acordo de paz na Ucrânia: “Trump tem relações próximas com Orbán e Putin tem relações construtivas com Orbán”. Manuel Serrano olha para o tema de outro prisma: “Estes idiotas úteis bloqueiam muito e têm sempre esta linha de pensamento orientada para que a prioridade seja os Estados-membros e não a Ucrânia. Isto é o que a Orbán defende”. O antigo membro da Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia considera que, neste caso concreto, “a primeira coisa importante é o enquadramento jurídico europeu – as sanções da União Europeia que proíbem o sobrevoo de aeronaves russas do espaço europeu, com exceção de casos humanitários ou que sejam compatíveis com o espírito do regulamento”. “E isso é, obviamente, algo que o Orbán vai tentar explorar.” 

Depois existe ainda a vertente que impede a vinda de Putin ao centro da Europa: “O mandado do Tribunal Penal Internacional [TPI]”. Manuel Serrano lembra que, este ano, a Hungria já anunciou que ia abandonar o TPI, mas essa saída é um processo que “exige um ano, mais ou menos, de carência para depois poder abandonar mesmo”. “Ou seja, a Hungria ainda estaria obrigada a deter Vladimir Putin assim que ele pisasse o território  húngaro.” Algo que “não vai acontecer”.

A visita de Putin também foi abordada pela vice-presidente da Comissão Europeia e responsável máxima da política externa da União Europeia, Kaja Kallas, que disse assim esta segunda-feira: “Em relação a Budapeste, não, não é agradável… ver que uma pessoa com um mandado de captura do TPI venha para um país europeu”. Kallas parece aceitar, no entanto, a vinda Putin desde que haja um “outcome”, ou seja, um resultado positivo para a resolução do conflito. Mas isso traz uma nova dúvida: como se assegura que haja um resultado papável proveniente de um reunião diplomática?

“A União Europeia não tem nenhuma forma de saber o que vai acontecer na reunião – porque não estará presente. E se a Ucrânia também não estiver presente, teremos Vitor Orbán, que é amigo de Putin, e Donald Trump, que sabemos que só está do lado da Europa e da NATO porque isso implica um lucro – os 5% da NATO”, afirma Manuel Serrano.

O especialista sublinha que o que Bruxelas tem em mãos “é um desafio criado para humilhar a Europa com a conivência de um líder sentado no Conselho Europeu [Viktor Orbán], que há muitos anos tenta bloquear e sabotar a política externa europeia – que exige unanimidade”. Para Manuel Serrano, devia ter sido ativado o artigo 7 do Tratado da União Europeia, que “permitiria suspender os direitos no Conselho”. “Não o fizemos, contemporizámos, e neste momento temos um problema muito sério – estamos sempre à procura de soluções criativas para evitar que estes senhores, estes idiotas úteis, bloqueiem a política externa europeia e de segurança. Por isso estamos aqui num jogo em que estamos a pagar a nossa incapacidade no âmbito da defesa. E, no âmbito político, permitimos que estes regimes iliberais se alastrassem, se propagassem, ganhassem peso, e agora estamos paralisados à procura constantemente de situações criativas que, por si só, não vão resolver nenhum problema”, afirma.

Manuel Serrano argumenta ainda que a “culpa” não é dos burocratas de Bruxelas ou do processo de decisão europeia, porque “as decisões estão a ser bloqueadas por estes Estados-membros”. “Isto é superimportante de explicar para as pessoas não pensarem que a culpa é da União Europeia, que a União Europeia não funciona. Não, a culpa é dos Estados-membros que, muitas vezes, olham só para os interesses nacionais em cima da mesa e não olham para a big picture.”

Por outro lado: para quem considera que Trump devia ter vencido o Nobel da Paz porque ser alegadamente um pacificador com capacidades globais, Manuel Serrano aconselha calma. “No Médio Oriente, os líderes aceitam muito bem este tipo de relação pessoal de governação assente em favores pessoais – como a relação entre Trump e o emir do Catar. Mas isso não é assim na Rússia nem na Ucrânia, onde Trump não tem esta vantagem. E também não é assim, por exemplo, no caso da China, como temos assistido nestes dias com as tarifas”, diz Manuel Serrano.

“Donald Trump faz uma política externa de atacar os fracos e de se vergar perante os fortes. Mas a Europa, se ceder a esta lógica, se a Europa aceitar ser fraca e arrastar a Ucrânia, a Europa vai pagar as consequências hoje ou amanhã”, refere Manuel Serrano. Aceitar a presença de Putin no centro da Europa “envia uma mensagem terrível de falta de unidade europeia porque, basicamente, a Hungria estaria a incumprir as normas europeias, o mandado do Tribunal Penal Internacional e a coerência da política externa da União Europeia”.