Misto de youtuber, narrador multimídia e autor de terror, o novo ídolo literário nipônico se esconde debaixo de uma máscara branca de papel machê e usa um recurso eletrônico que faz sua voz soar como a de uma menininha de 8 anos. Em todas as suas aparições, um traje preto fino cobre inteiramente o seu corpo. Embora a sua “imagem” esteja espalhada pelo Japão, tudo o que fãs — e jornalistas — sabem sobre ele se resume a um pseudônimo: Uketsu, expressão que em japonês significa algo como “buraco na chuva”.
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Se você achou a apresentação insólita, espere até ler os livros. Lançados no Brasil em 2025 pela Intrínseca, os dois volumes da série “Casas estranhas” mergulham no absurdo através da arquitetura. No primeiro livro, um escritor pede ajuda a um projetista versado em ocultismo para desvendar os segredos de uma casa aparentemente banal. À medida que a investigação avança, outras residências passam a surgir, todas ligadas por anomalias espaciais.
Narrado quase como um relatório, o livro convida o leitor a participar dessa busca apresentando as plantas baixas das residências, todas marcadas por sutis anomalias espaciais que desafiam a lógica. São detalhes que provocam uma sensação de desconforto e estranhamento, como portas que não levam a lugar algum, cômodos dispostos em locais impossíveis e espaços sem função aparente. Aos poucos, essas casas se interconectam em uma teia de histórias macabras, que intrigam sem jamais recorrer ao horror gráfico.
“Casas estranhas” vendeu dois milhões de exemplares pelo mundo e levou a uma sequência, “Casas estranhas 2: O mistério das onze plantas baixas”, que acaba de chegar às livrarias com mais uma coleção de enigmas. Entre os dois volumes da série, Uketsu lançou “Imagens estranhas” (publicado em abril deste ano pela Suma), outro grande êxito comercial. Três dos dez livros de ficção mais vendidos no Japão no ano passado foram escritos pelo best-seller mascarado, cuja verdadeira identidade é conhecida por apenas 30 pessoas, segundo o próprio.
Em entrevista ao GLOBO por e-mail, Uketsu explica o sucesso de sua obra:
— Os fãs de mistério gostam de resolver os enigmas por conta própria, porque meus livros são fáceis de ler, minimizando o esforço de pensamento e apresentando resolução em um curto espaço de tempo. Meu objetivo é criar uma experiência na qual as pessoas cansadas do mundo real possam usufruir de um momento de paz.
Ao contrário de outros escritores que optaram pelo anonimato parcial, como o americano Thomas Pynchon, ou total, como a supostamente italiana Elena Ferrante, Uketsu fez do mistério sobre a sua identidade uma espécie de extensão de sua obra. Como o próprio autor é personagem de “Casas estranhas”, o apagamento de sua natureza humana ajudaria os leitores a “apreciarem a história de forma mais pura”, diz ele.
O disfarce de Uketsu se inspira no visual de um kuroko, o assistente de palco do teatro tradicional japonês. A máscara branca, porém, lembra o personagem Sem Rosto (Kaonashi), do anime “A viagem de Chihiro”, uma figura solitária e carente que absorve a personalidade e as características das pessoas com quem interage.
— Foi para mim inesperado que, como resultado, tenha ficado parecido com o Kaonashi — diz o autor, que começou a usar a máscara para não ser reconhecido no supermercado em que trabalhava. — Receio que um dia o Hayao Miyazaki (diretor de anime e criador de “A viagem de Chihiro”) se enfureça comigo por causa disso. No entanto, há muito tempo o mundo do entretenimento japonês apresenta muitos heróis ou anti-heróis com o rosto escondido, como o “Demônio das vinte faces”, o “Máscara do luar”, o “Kamen Rider” e outros. Acho que há muita influência deles.
Com seu traje, Uketsu estrela as peculiares criações do seu canal do YouTube, que acumula quase 1,8 milhão de inscritos. Em vídeos com linguagem artesanal, ele interage com objetos esquisitos, como um dente gigante ou aspargos em formatos de dedos. Em outro post, que serviu de embrião para “Casas estranhas”, o autor examina com um amigo designer as plantas de uma casa problemática.
Esse material audiovisual compõe uma obra multimídia, especulativa e interativa, que reflete a cultura colaborativa dos fóruns da internet. Em 2024, “Casas estranhas” virou um filme dirigido por Junichi Ishikawa. Também foi transformado em uma série de quatro mangás intitulados “A casa estranha” — o primeiro volume foi lançado em junho no Brasil pela Panini.
— Sinto que a literatura de terror está destinada a procurar o quão perto poderá estar do leitor, ou seja, se poderá superar a quarta parede. Portanto, sinto que o número de obras que enfatizam a interatividade deve aumentar — diz Uketsu.