Astrid Roemer, 78, é uma das convidadas internacionais desta Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Talvez você nunca tenha ouvido falar dela. Normal. Até pouco tempo atrás, esta surinamesa que escreve em holandês, língua oficial do seu país, não era mesmo muito conhecida fora de círculos literários restritos.
Aí ela ganhou, dois anos atrás, uma tradução em inglês de sua obra maior, lançada agora em português pela Companhia das Letras. “Sobre a Loucura de uma Mulher”, publicado em 1982, concorreu neste ano ao Prêmio Booker Internacional —são 43 anos entre a publicação na língua original e a entrada na lista de indicados, um recorde do prêmio.
O romance veio embalado como literatura queer ambientada na ex-colônia holandesa, o que pode soar restritivo para uma autora que se define como cosmopolita. Suas reflexões sobre racismo, sexualidade e misoginia são universais e dialogam com nossos tempos, mesmo se escritas décadas atrás.
“A sociedade está estruturada no que chamamos de patriarcado”, ela afirma à Folha dias antes de desembarcar em Paraty. “Dizem que Donald Trump é capaz de usá-lo. Mas não é apenas ele. São todos os garotos.”
O nome da protagonista do livro, Noenka, lembra a sonoridade do “nunca” escutado no Brasil, que faz fronteira com o Suriname. Ela se descreve assim no livro: “Eu sou Noenka, que significa: Nunca mais. Nascida de dois opostos, uma mulher e um homem que desmancham até os meus sonhos. Sou mulher, mesmo que eu não saiba onde o ser-mulher começa e termina, e aos olhos dos outros sou preta, e toda vez espero para saber o que isso significa”.
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Roemer sabe o que significa ser uma mulher negra do menor dos países sul-americanos, onde voltou a morar quatro anos atrás. Ela saiu do Suriname pela primeira vez aos 19 anos, em 1966, e já morou em várias cidades europeias, até em frente a um mosteiro belga. Produziu uma obra farta, da poesia à prosa. A rota da salvação, para ela, necessariamente passa pela palavra —e pelas mulheres.
“Sou uma mulher velha agora, mas espero que suas filhas, e as filhas das suas filhas, ajudem a curar a sociedade”, diz. E que essa nova geração não largue mão do que é mais caro a essa quase octogenária de sorriso fácil e longas pausas antes de nos deixar saber o que pensa sobre determinado assunto.
“Por favor, não pare de escrever. É o que digo aos jovens, nunca parem de escrever, não deixem alguma outra coisa, como robôs, dizer o que queremos. Não! Use sua experiência, seu cérebro, sua biologia.”
Roemer gosta de mulheres fortes. Sua Noenka, a certa altura e “por puro atrevimento”, corta “um pedaço de mais de um ano” das madeixas e reage ao ato impulsivo: “Começo a chorar quando [as] vejo sobre minha cama e decido nunca mais alisar o cabelo, nunca mais depilar as axilas, deixar meu bigode em paz”.
Antes, ela larga um marido abusivo nove dias após se casar e não recua ante a intimidação de um colega de emprego: “Mulheres casadas que deixam seu marido e causam todo tipo de sensacionalismo não podem trabalhar em nossas escolas cristãs”. Ou ela voltava para quem lhe fazia infeliz, ou pedia demissão. Não olhou para trás.
A obra de Roemer rende comparações com as americanas Toni Morrison e Alice Walker, numa trama que espraia referências homoafetivas pelo caminho. Uma professora de Noenka “tem os maiores seios que eu já vi e olhos saltados como bolinhas de gude verdes”. Há Lady Morgan e seu perfume, “cujo aroma almiscarado avançava sobre mim como um insulto dissimulado”. Uma vulcânica paixão a faz se declarar: “Você é o que me cura. Você me dá vida, Gabrielle”.
Além de escritora, Roemer é também terapeuta de família. Mesmo esse segundo ofício está conectado com sua escrita. “Eu queria saber que tipo de linguagem as pessoas, especialmente os surinamenses, usam quando estavam em dor, trauma. Porque, ainda que o holandês seja a língua oficial, todas as diferentes etnias do país têm sua língua mãe. Quero saber que tipo de metáforas usam para descrever seus problemas.”
Cobras têm carga simbólica forte entre conterrâneos. “É uma força pesada em vários países tropicais.” É comum, na pele de terapeuta, Roemer escutar mulheres relatando sonhos com ofídios, e aí desabafam: “Estou cansada disso, assustada”.
“Pergunto qual é o problema. Elas respondem: porque uma cobra é como o demônio, é o homem que me machuca.” Em “Sobre a Loucura de uma Mulher”, jiboias rastejam por antigas plantações escravistas, e cobras buscam “o frescor das lápides”.
Palavras importam. Roemer escreve em holandês, a língua do colonizador, e entende as implicações disso. Ela fala sobre culturas idiomáticas em que “a cor escura é sempre num contexto ruim”. A expressão “mercado negro”, por exemplo. “Está ok se um holandês quer dizer preto [como sinônimo de] escuro, mas não me chame de preta. Procure outra palavra para mim.”
Ela diz “amar muito o holandês, sobretudo suas canções de amor e suas poesias de amor”, mas a ironia vem sorrateira. Para ela, a língua está fadada a sumir do Suriname. Ouve-se línguas locais, ou um pouco de espanhol, de português. “A maioria das pessoas escreve em inglês.”
A proximidade geográfica com o Brasil não se traduz em intercâmbio cultural relevante, reconhece esta admiradora do colombiano Gabriel García Márquez. “Esta é uma das razões pelas quais estou feliz de ir para o Brasil. Vou levar dinheiro o suficiente para comprar romances daí.” Aceita dicas.
Pouco se sabe, pelas bandas brasileiras, da história surinamesa. É uma explicação plausível para ter passado batido o episódio em que Roemer foi criticada por relativizar uma acusação de múltiplos assassinatos contra um ex-presidente do país. Ela havia ganhado um importante prêmio literário, o P.C. Hooft, mas a cerimônia acabou cancelada.
Dois anos antes, em 2019, Dési Bouterse foi condenado pela morte de 15 opositores de uma ditadura militar instalada com sua ajuda nos anos 1980. Ele morreu em 2024, foragido. Declarações simpáticas a Bouterse se voltaram contra a escritora, que apontou nele um compromisso sólido com a descolonização do Suriname.
Ela reflete sobre o ocorrido que a deixou “profundamente machucada”. “Muitas pessoas foram inspiradas por ele. Mas houve um tipo de proibição, se você falar dele de forma positiva, está encrencando, algo vai acontecer. Não acho que seja justo [chamá-lo de assassino]. Não tem provas que ele matou alguém.”
Roemer conta que a pressão para cancelar o reconhecimento pelo conjunto de sua obra não a pasmou tanto. “Para mim foi: escutem, nunca, nunca penso em receber qualquer prêmio, nunca. Se quiserem tirá-lo de mim, apenas tirem. Mas vocês não podem me impedir de agir como quero.”
Em 2004, ela publicou um livro de memórias cujo título pode ser traduzido como “Enquanto Eu Estiver Viva, Não Estarei Morta”.