“A pergunta que mais me fazem investidores e consultores financeiros é quando é que a dívida federal [norte-americana] vai explodir na cara de todos nós. A minha resposta habitual é que, embora estejamos a falir, estamos a falir lentamente. […] O facto de, ainda hoje, o governo americano poder pedir dinheiro emprestado durante 30 anos a um rendimento de apenas 4,6% demonstra a convicção de que ainda há espaço para o governo contrair mais empréstimos”, diz o JP Morgan.

O chefe de estratégia global do JP Morgan Asset Management, num artigo publicado na semana passada, defende que os Estados Unidos “estão a falir” embora isso esteja a acontecer de “forma lenta”. David Kelly refere que esta é a consequência da crescente dívida federal norte-americana e dos constantes aumentos do défice, algo que deve continuar nos próximos anos fiscais.

“A pergunta que mais me fazem investidores e consultores financeiros é quando é que a dívida federal [norte-americana] vai explodir na cara de todos nós. A minha resposta habitual é que, embora estejamos a falir, estamos a falir lentamente. Os mercados obrigacionistas globais estão muito bem cientes da trajetória da dívida americana. O facto de, ainda hoje, o governo americano poder pedir dinheiro emprestado durante 30 anos a um rendimento de apenas 4,6% demonstra a convicção de que ainda há espaço para o governo contrair mais empréstimos”, diz David Kelly.

O estrategista considera que “existe o perigo” de as escolhas políticas conduzirem a uma “deterioração mais rápida” das finanças federais, levando a um recuo das taxas de juro a longo prazo e a um dólar mais baixo. “Com base apenas nas alocações e avaliações atuais, muitos investidores provavelmente considerariam diversificar os seus portefólios adicionando ativos alternativos e ações internacionais. O risco de passarmos de uma falência lenta para uma falência rápida é um motivo importante para tomar esta decisão hoje”, defende David Kelly.

Défice beneficiou de efeito artificial

Tendo em conta dos dados do Gabinete de Orçamento do Congresso norte-americano David Kelly salienta que o défice [norte-americano], de 1.809 biliões de dólares, ou de 6% do Produto Interno Bruto (PIB), “parece uma ligeira melhoria” face aos 1.817 biliões de dólares, ou 6,3% do PIB, do ano fiscal de 2024.

“Isto deve-se principalmente ao facto de que o valor do ano fiscal de 2024 teria sido de 1.889 triliões de dólares se não fosse uma particularidade do calendário no início desse ano”, explica o estrategista.

Contudo, David Kelly, salienta que os dados relativos ao ano fiscal de 2025 “beneficiaram de uma redução algo artificial” de 234 mil milhões de dólares nas despesas, “devido a alterações no valor capitalizado dos programas federais de empréstimos estudantis”.

Não existindo esse efeito artificial, refere o chefe de estratégia global do JP Morgan, o défice teria sido de 2.043 biliões de dólares, ou 6,7% do PIB.

Voltando a se sustentar nos dados do Gabinete de Orçamento do Congresso norte-americano, David Kelly salienta que a expetativa ia no sentido de que a ‘One Big Beautiful Bill Act’ [proposta orçamental norte-americana] acrescentasse 126 mil milhões de dólares ao défice do ano fiscal de 2025 (excluindo a redução do empréstimo estudantil), levando a um aumento no défice do ano fiscal de 2026 em 277 mil milhões de dólares. Mas para o estrategista este valor pode “estar subestimado” uma vez que “praticamente todos os novos incentivos fiscais ao rendimento das pessoas singulares que entraram em vigor retroativamente a 1 de janeiro deste ano deverão aumentar os reembolsos no ano fiscal de 2026, em vez de reduzir a retenção na fonte no ano fiscal de 2025”.

O estrategista refere que se assume também que as receitas tarifárias possam atingir uma média de 36 mil milhões de dólares por mês entre agora e setembro do próximo ano (a média foi de 29 mil milhões de dólares nos últimos três meses) e projeta que o crescimento nominal do PIB seja de aproximadamente 4,5% no próximo ano. “As despesas líquidas com juros, que totalizaram aproximadamente 980 mil milhões de dólares no último ano fiscal [2025], poderão crescer para 1.046 biliões de dólares no ano corrente, uma vez que o aumento do stock de dívida compensa a estabilização da taxa média de juro paga sobre este stock, que tem uma variação relativamente lenta. Neste cenário, o défice sobe de 1.809 biliões de dólares, ou 6% do PIB, no último ano fiscal, para 2.132 biliões de dólares, ou 6,7% do PIB este ano”, diz David Kelly.

Dívida dos EUA deve continuar a crescer mesmo com crescimento económico

David Kelly refere que a dívida federal, que está na posse dos norte-americanos, atinge os quase 30.3 biliões de dólares ou, 99,9% do PIB. “Partindo destes níveis, se o PIB nominal crescer cerca de 4,5% daqui para a frente (constituído por 2% de crescimento real e 2,5% de inflação), qualquer défice orçamental acima dos 4,5% fará com que o rácio dívida/PIB aumente”, calcula o estrategista.

“De acordo com as nossas premissas, o rácio dívida/PIB sobe de 99,9% em 30 de setembro de 2025 para 102,2% do PIB 12 meses depois”, acrescenta David Kelly.

E de acordo com o estrategista do JP Morgan existem razões para acreditar que a dívida [norte-americana] possa subir a um ritmo superior, caso não se concretizar o cenário base do executivo norte-americano.

David Kelly diz que o cenário base traçado parte do princípio de que o governo norte-americano “vai continuar” a arrecadar receitas tarifárias muito significativas todos os meses. Mas aqui pode existir um obstáculo.

“Esta suposição [do governo] pode ser refutada se o Supremo Tribunal decidir, nos próximos meses, que as tarifas impostas pelo Presidente, Donald Trump, invocando a Lei dos Poderes Económicos de Emergência de 1977, são, de facto, ilegais. Isto, no mínimo, forçaria o governo a voltar à estaca zero para impor tarifas de substituição sob alguma outra autoridade ou remetendo um projeto de lei para o Congresso. Além disso, poderá obrigar a reembolsos substanciais de tarifas já pagas nos últimos meses”, alerta David Kelly.

David Kelly acrescenta que embora seja esperado um aumento dos reembolsos de imposto sobre o rendimento para “impulsionar temporariamente” a procura no início do próximo ano, este impulso “desaparecerá rapidamente” assim que os reembolsos forem gastos.

“Isto pode levar o Congresso a fornecer mais estímulos sob a forma de “cheques de restituição de tarifas”, ou de algum outro dispositivo, “para dar mais impulso à economia rumo às eleições intercalares”, diz o estrategista.

“Finalmente, tudo isto pressupõe que não haja recessão nem necessidade de outros gastos significativos em prioridades nacionais ou internacionais”, refere David Kelly.

Para o estrategista do JP Morgan, face ao exposto, um défice igual a 6,7% do PIB “deve ser provavelmente considerado uma estimativa baixa do saldo negativo” deste ano.

Estrategista espera que défice se mantenha estável em 2027 e 2028

David Kelly considera que em termos teóricos o défice norte-americano “deve manter-se relativamente estável” nos anos fiscais de 2027 e 2028 e “diminuir ligeiramente” no ano fiscal de 2029, “uma vez que os cortes temporários de impostos da proposta orçamental norte-americana” expiram a 31 de dezembro de 2028.

“No entanto, nenhum observador experiente da política de Washington presumiria que estes cortes expirariam como previsto, e, portanto, uma previsão básica razoável seria que o défice oscilasse entre 6% e 7% do PIB na próxima década, aumentando o rácio dívida/PIB em cerca de dois pontos percentuais a cada ano”, refere David Kelly.

Mas mesmo isto, diz David Kelly, “pode ser demasiado otimista”, porque “pressupõe um crescimento económico ininterrupto e, mais importante, que, apesar do populismo tanto da direita como da esquerda, o Congresso encontre a disciplina necessária para evitar novos cortes de impostos ou a expansão” dos programas governamentais.

“Um cenário mais provável é que, devido a uma emergência ou a uma recessão, o défice aumente para 7% ou mais do PIB, levando a uma aceleração da acumulação da dívida federal”, defende o estrategista.

David Kelly diz que alguns defendem que uma política monetária mais flexível “poderá abrandar” esta expansão da dívida, adiantando que “é verdade que os pagamentos líquidos de juros representaram mais de metade” do défice total no último ano fiscal. “No entanto, uma política monetária demasiado flexível poderia conduzir tanto a um dólar mais baixo como a uma inflação mais elevada, elevando as taxas de juro a longo prazo e, eventualmente, forçando um aperto monetário muito mais doloroso”, alerta o estrategista.