Os factos

Epstein, Gaza e a possibilidade muito real de milhões de norte-americanos perderem os seus seguros de saúde já a 1 de Novembro. Três pontos de tensão, não apenas entre esquerda e direita, mas no seio do próprio trumpismo. 

Comum aos três focos de contestação interna é o nome de Marjorie Taylor Greene, congressista republicana da Georgia e, ainda hoje, um dos principais rostos do movimento MAGA e um dos elementos do partido mais ideologicamente próximos do Presidente norte-americano.

Ei-la, no entanto, a juntar-se a congressistas democratas para exigir a publicação de todo o processo de Jeffrey Epstein. A tornar-se na primeira republicana no Congresso a acusar Israel de genocídio em Gaza e numa das poucas vozes no partido a opor-se à ajuda militar e financeira ao aliado norte-americano no Médio Oriente. E a exigir aos colegas de bancada o seu regresso a Washington, para pôr termo ao shutdown orçamental e, sobretudo, para prolongar os subsídios federais da era Obama que permitem a milhões de norte-americanos manterem um seguro de saúde.

“Vou contrariar toda a gente neste tema, porque quando os créditos fiscais expirarem este ano, o preço dos seguros dos meus próprios filhos adultos para 2026 vão DUPLICAR, tal como os de todas as maravilhosas famílias e pessoas trabalhadoras no meu distrito”, escreveu nas redes sociais, numa de várias publicações sobre o assunto. 

Greene, de 51 anos, refere-se a uma possível catástrofe financeira e social a menos de duas semanas de distância. 

O Partido Republicano incluiu na sua lei orçamental geral o fim daqueles subsídios federais, despesa que terá agora de ser assumida pelos estados (grande parte não terá capacidade financeira para fazê-lo, nem vontade), pelas seguradoras (improvável), ou pelos segurados (o elo mais fraco). O gabinete de estudos orçamentais do Congresso, um organismo técnico e apartidário, prevê que milhões de pessoas deixem de conseguir adquirir os seus seguros – fundamentais num país sem um “SNS” – ou vejam o seu custo mensal subir centenas ou milhares de dólares. 

O Partido Democrata exige o prolongamento destes subsídios como condição para aprovar mais uma tranche para financiar as actividades da administração pública federal. Ao contrário de um “orçamento do Estado” anual, à portuguesa, nos EUA há ciclos de financiamento mais curtos, que têm de ser aprovados no Senado por maioria qualificada, que o Partido Republicano não tem. O impasse dura desde 1 de Outubro, e há serviços públicos paralisados e centenas de milhares de funcionários em casa ou a trabalhar sem receber salário.

Trump, a Casa Branca e a liderança republicana têm tentado responsabilizar os democratas pelo shutdown e as suas consequências. “Rebeldes” como Greene, no entanto, vêm minar a narrativa oficial, que não encontra apoio maioritário expresso pelas sondagens

A análise

A republicana da Georgia, que se tem abstido de atacar directamente Trump, diz correr “em pista própria”, pelos seus constituintes, e que se alguém mudou foi o partido e não ela.

Num artigo recente, o Guardian cita politólogos norte-americanos, como Andra Gillespie e Henry Olsen, para sublinhar que não há forçosamente uma contradição em Greene: há um vasto sector republicano, incluindo no universo MAGA, favorável à existência de um certo grau de assistência social, e não partidário do anti-estatismo reaganista. 

“Na questão do apoio aos americanos da classe média trabalhadora, ela provavelmente fala por um segmento muito grande de republicanos, e por um grande grupo de pessoas que seriam MAGA em oposição aos republicanos da velha guarda”, diz Olsen. 

Greene, nesse sentido, estará mais próxima da promessa populista com que Trump regressou à Casa Branca, a promessa de recuperação do poder de compra da classe média, do que o próprio Presidente. E muito mais próxima, certamente, do que a ala de tendência libertária, ligada a Silicon Valley, em parte personificada por J.D. Vance, vice-presidente e, teoricamente, um natural herdeiro da liderança do movimento. Há aqui pistas para o pós-Trump e os seus debates.

Posto isto, e apesar de algumas palavras elogiosas dos adversários democratas, Greene continua a não ser uma moderada. Nem hoje, nem em retrospectiva. Um dos actos que trouxe fama nacional a Greene, promotora de teorias de conspiração como o QAnon, foi, recorda a American Prospect, correr atrás de um sobrevivente de um massacre numa escola e activista democrata, acusando-o de estar a soldo de George Soros e dizendo-lhe que estava armada. 

Outros feitos: desejar a morte de opositores políticos; comparar a vacinação contra a covid-19 às câmaras de gás nazis; alegar que os furacões são encaminhados de propósito contra regiões republicanas; negar a veracidade de vários tiroteios e atentados e responsabilizar os judeus por uma série de catástrofes, acusando-os de terem ateado incêndios florestais na Califórnia com lasers a partir do espaço. O documentado antissemitismo de Greene, aliás, explicará parte da sua oposição a Israel.

Terá também outros motivos, mais comezinhos, para ter declarado guerra à liderança republicana. Trump terá vetado a sua pré-candidatura ao Senado em 2026, e Greene acusa a hierarquia nacional do partido de agir como um “clube do bolinha”, de índole sexista, que impede a ascensão de mulheres. Greene terá praticamente garantida a continuidade no Congresso, sendo tremendamente popular no seu círculo eleitoral na Georgia, mas terá vedada a entrada no Senado ou uma também discutida candidatura a governadora estadual, que já dependem de outros avais e financiamentos.

Mas será difícil calá-la. Greene continuará a ser uma carta fora do baralho num Congresso onde, por agora, os republicanos mantêm uma maioria curta, vulnerável a votos rebeldes. E continuará a sinalizar ao partido que há certamente vida para além de Trump.