Há arbustos que podem ficar tão altos como uma árvore e há filas que parecem crescer como arbustos. Na quarta-feira, exatos treze minutos antes das nove da noite, Sandra e Mário atravessaram a estrada, subiram o passeio contornando o derradeiro obstáculo — um homem de fato e gravata concentrado no telemóvel — e ajeitaram-se quase de costas para a porta por onde queriam entrar. Eram os últimos da longa fila que saía da porta da Igreja dos Jerónimos, virava à esquerda para se estender pela calçada até ao cruzamento com a Rua dos Jerónimos. Cinco minutos depois, sem terem dado um passo, já estavam à frente de dez pessoas no longo caminho para a última homenagem a Francisco Pinto Balsemão, que morreu no dia 21 de outubro, aos 88 anos.

Dizem as regras do jornalismo – e Balsemão foi sempre jornalista – que as filas se medem em metros, talvez em passos, mas esta noite a unidade é o minuto. São 120 até à porta, duas horas, passo a passo, onde cabe um país inteiro. Dez passos e ali está João Soares, antigo presidente da Câmara de Lisboa, filho de Mário Soares, Presidente da República e amigo de Pinto Balsemão, cujas cerimónias fúnebres ocorreram neste mesmo local em 2017. Um pouco adiante, Rui Tavares, deputado do Livre, fala ao telefone e à sua frente está Henrique Raposo, cronista do Expresso, que aguarda de braços cruzados. Eis também Luís Marques Mendes, candidato presidencial, imóvel, onde a fila faz a curva em direção à porta da Igreja. Adelino Gomes, jornalista, está no mesmo local onde ficou, irredutível, Pedro Passos Coelho quando chegou às 18h45. José Manuel Júdice já entrou e saiu. Ângelo Correia ainda espera. Francisco Louçã dá uma entrevista. Marcelo Rebelo de Sousa e Luís Montenegro chegaram juntos no mesmo carro e no mesmo carro juntos partiram.

Nas duas horas estendidas no passeio, há gente de esquerda e de direita, futebolistas, artistas, empresários e juristas, amigos, gente conhecida e os outros que não. Ainda agora passou Clara Ferreira Alves, cronista do Expresso, e de um carro escuro e brilhante saiu há pouco José Pedro Aguiar Branco, presidente da Assembleia da República. “Um cavalheiro da democracia, uma figura que sabia estar bem com toFdas e todos”, diz Pedro Santana Lopes, antigo primeiro-ministro e presidente da Câmara da Figueira da Foz. Cada um à sua maneira, com histórias mais antigas ou memórias de encontros recentes, do antigo Presidente Ramalho Eanes ao candidato presidencial António José Seguro, as palavras são de elogio. “Unanimidade” é a palavra escolhida por Santana Lopes na hora do velório. Chegam mais ministros, partem mais ministros. Chegam flores, partem flores – as regras do mosteiro não permitem que haja mais do que três coroas no interior. Há seis militares, dois por cada ramo das Forças Armadas, em guarda de honra junto ao caixão. Lá fora, as bandeiras estão a meia-haste.

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O velório de Francisco Pinto Balsemão, no Mosteiro dos Jerónimos em Belém, Lisboa, reuniu familiares, amigos e diversas figuras públicas para prestar uma última homenagem ao antigo primeiro-ministro e fundador da SIC e do Expresso

Nuno Botelho

O velório de Francisco Pinto Balsemão, no Mosteiro dos Jerónimos em Belém, Lisboa, reuniu familiares, amigos e diversas figuras públicas para prestar uma última homenagem ao antigo primeiro-ministro e fundador da SIC e do Expresso

O velório de Francisco Pinto Balsemão, no Mosteiro dos Jerónimos em Belém, Lisboa, reuniu familiares, amigos e diversas figuras públicas para prestar uma última homenagem ao antigo primeiro-ministro e fundador da SIC e do Expresso

Nuno Botelho

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Vem do Tejo o som da buzina de um navio. Está um nevoeiro alto, que não deixa ver o Cristo Rei para lá do Tejo.

Sandra e Mário avançaram dez passos. Estão de costas para o Palácio de Belém – talvez vejam a copa das árvores mais altas do jardim – e quase de frente para o outro Jardim, o da Praça do Império, carregado de flores, que agora, noite escura de céu carregado de nuvens, mal se distinguem umas das outras. Mas são muitas, tantas quantas as facetas da vida de Francisco Pinto Balsemão, de quem se diz ter sido advogado, político, empresário, jornalista, fundador do Expresso e da SIC. De quem se poderia dizer que foi opositor do regime que levou o Império até ao fim. Que foi primeiro-ministro, após a morte de Sá Carneiro, e empenhado, séculos após as caravelas partirem daqui mesmo, de Belém, no processo de virar o país para a Europa, caminho que culminaria nos Jerónimos, em 1986, com Mário Soares a assinar a adesão de Portugal à CEE. Sim, teve um papel decisivo na revisão constitucional de 1982, fundou o PSD, foi deputado, criou um prémio chamado Pessoa e gostava de ouvir música na Gulbenkian e de jantar com amigos. Para Sandra e Mário pode ter sido isso tudo, mas era o doutor. E o doutor gostava de plantas.

Escreve-se com “e” e “er” no fim a palavra cotoneáster, um desses arbustos que, deixados à solta, podem crescer tanto como uma árvore. Mário é o jardineiro de Francisco Pinto Balsemão e diz que, por esta altura, no início do outono, o arbusto se enche de bagas vermelhas. Na primavera, as flores são brancas. “Ele gostava desse arbusto. Gostava dos animais, dos pássaros”, diz Mário, que agora deu mais um passo. “Sabe, o meu pai tem a mesma idade do doutor. Vive em Viseu. Ele um dia veio ajudar-me e falaram os dois, sobre um livro antigo.” Sandra sorri e diz ao marido: “O teu pai também sempre foi um político…” Ele sorri de volta. Mas não muito. “É um dia muito triste para nós. Soube ontem, pela televisão. Depois, o meu pai ligou-me. O doutor faleceu.”

Horas antes, cinco e meia da tarde, uma mulher explicava em espanhol ao grupo excursionista vindo de Guadalajara por que razão estavam parados à porta da Igreja a olhar para Santa Maria de Belém, que lá de cima os olha de volta, com o menino nos braços. “É como se tivesse morrido Felipe González”, talvez sem saber da amizade que unia Francisco Pinto Balsemão ao antigo primeiro-ministro espanhol. Seja qual for a palavra – incómodo, desilusão, frustração – seria repetida vezes sem conta em castelhano, francês, coreano, chinês, inglês… Não, hoje não é possível visitar a igreja, dizia, uma e outra vez, o funcionário dos Jerónimos, vencido e incapaz de lutar contra o frenesim da realidade a acontecer à sua frente. Autocarros, elétricos, carros, tuk-tuk, bicicletas, telemóveis, grupos atrás de uma bandeira levantada para o céu e famílias de pastel de nata na mão, selfies e fotografias. O grandioso mosteiro que levou um século a construir carregado em menos de um segundo para a memória de telemóveis vindos de todo o planeta.

No interior da Igreja, onde a fila acaba, está um piano. Ouve-se Bach, Mozart, Schubert.

Após a morte de Francisco Pinto Balsemão, muitos dos que o conheciam afirmaram estarmos perante o fim de uma era, de um irrepetível mundo feito por figuras maiores do que o tempo. Sandra e Mário, que conhecem as árvores e plantas, sabem que alguns cedros podem viver séculos, imponentes, enquanto tudo muda à sua volta. Outros adoecem, ficam frágeis e morrem. Havia um assim no jardim de Pinto Balsemão. “O doutor gostava muito daquele cedro e estava preocupado por causa dos pássaros que lá tinham os ninhos, as corujas, mas não havia outra forma”, conta Mário. Quando atingem vinte anos, às vezes um pouco mais, os cedros começam a produzir pinhas. E de dois em dois anos, quando o frio aperta, as pinhas abrem e as sementes voam para longe. São sementes aladas. Só que este inverno já não será assim. O arbusto salpicado de vermelho estará lá. Mas a árvore grande morreu antes do homem que gostava dela.