Em “Eterna Fantasia”, segundo romance de Danichi Hausen Mizoguchi, lançado pela Dublinense, o autor dá visibilidade crítica a grandes acontecimentos que marcaram a política brasileira nos anos 2010. 

Através de detalhes da vida mundana de Maria – uma mulher por volta dos trinta anos, que vive o mal-estar do dia a dia -, o escritor transita entre as camadas da intimidade dessa protagonista e a superfície da vida pública.

A estrutura em que se constrói a narrativa é um país sendo tomado pela onda conservadora na política, com golpes, intolerâncias e violência ideológica. Com Maria, oautor nos mostra o reflexo da luta estagnada, na rotina de alguém que viveu, ao longo desse período, a lucidez de um Brasil em ruínas.

Presente nos grandes atos pela democracia, testemunhando os ataques contra Dilma Rousseff, o assassinato de Marielle e Anderson, até a ascensão das fake news e  eleição de Jair Bolsonaro – Maria assume, em seu dia a dia, a figurabilidade de um jogo de sombras, diante do abismo político – ora nos levando para dentro, ora nos levando para fora do mal-estar. 

Nesse cenário, a noção de crise parece estar presente no romance como artifício decisivo e perene, ao lado da palavra luta. A crise se insinua no cotidiano da protagonista, e se revela como destino consumado na política. 

Enquanto o país está em colapso, na disputa pelo poder, com o olhar da protagonista, temos a chance de refletir sobre a crise institucional, o amor e a amizade. Assim, com a lente do narrador ampliada no universo subjetivo, podemos conhecer a complexidade das relações do trabalho corporativo, a experiência urbana, os conflitos, as rotas de fuga, além dos enfrentamentos individuais e coletivos. 

Em paralelo ao suspense de um golpe no país, a ONG na qual Maria trabalha mostra uma disputa articulada pelo centro do poder, através da comunhão de outros dois personagens, Heloísa e Saul. Eles incorporam a imagem do recrudescimento do chefe intransigente no interior da instituição, após Regina, fundadora da organização renunciar ao cargo de coordenadora, passados vinte anos de seu trabalho ali. 

  Com a assunção hierárquica, parece sobressair uma crise da representatividade. Se antes, na ONG, ao fazer trabalhar o tema “as dificuldades da luta pelos direitos das mulheres” o grupo contava com Regina, implicada e identificada com a causa de sua fundação – agora – com os novos coordenadores, Heloísa e Saul, a palavra luta não encontra uma sustentação na prática.

 Nessa toada, a representatividade não opera um movimento. Em seu lugar, observamos a objetificação de uma causa, transformada em uma engenhosa cortina de fumaça, por aqueles que pretendem alcançar outro objetivo, sorrateiramente aparente – a realização pessoal do poder pelo poder. 

Diante das incoerências institucionais, a palavra luta assume o estado de uma inerte representação, imprimindo um discurso dissociativo. Esse é um efeito que se intensificou na política com a chegada das fake news e sua derivada opinião de performance. Quando a palavra passa a ser utilizada como mercadoria, ela é consumida e subalternizada à posição de mero objeto realizado, fetiche do gozo individual. 

  Assim, a coalizão dos novos coordenadores desvela a tirania pelo poder, em consonância com a política ascendente no país, e traz à tona um modo de trabalho que vai esvaziando o sentido da vida. É aí que a palavra luta parece figurar o seu estado de transposição, passando de substantivo “a luta” para um tempo verbal indicativo de Maria – “ela luta”. 

Nesses termos, a visibilidade da aliança da protagonista com seus amigos surge, por sua vez, no texto – constantemente – como contraponto central frente ao cansaço corporativo que apavora a sua vida, pouco a pouco. Assim,  os personagens Dulce, Regina, Raul, Guta, Cícero e Érico são os amigos do trabalho, da rua, da praia e da jantinha em dia de semana. Eles são parceiros da faculdade, do samba, do flerte, da cervejinha, dos protestos, e situam a amizade como essa zona de ilusão necessária contra o peso do mundo.

Com esse enlace vital, a amizade é materialidade reflexiva, que articula uma temporalidade extraordinária ao presente, contra a forma mortífera instituída no mundo. Nesse plano literário, a amizade é tema coadjuvante e preciso, capaz de suportar o esplendor e o desespero de cada instante.

Assim, a noção de amizade se apresenta como lembrança nos momentos de recolhimento necessário, quando o corpo absorve o cansaço dos dias. Presentifica-se através de uma conversa despretensiosa, como na ilha, contrária à lógica ordinária do mundo. Emerge como um tempo de festa que perdura, na indeterminação, entre o que já foi e o que pode ser – ainda que as más notícias maculem nossa vitalidade. Mostra-se na dissonância e no conflito, quando  assumimos em alto e bom som ‘ele não’. Surge como amuleto, que protege e traz sorte. Torna-se aliança contra a coalizão fascista. Assoma-se como palavra e escuta sempre que ficamos à mercê de um recrudescimento trágico. 

         Nessa configuração, a amizade não é um efeito de solipsismo discursivo, e sim presença insurgente, materialização temporal, que se institui na realidade, no momento mesmo de sua aparição.

Como tentativa de compreender a emergência de um ingovernável vital na política, no ensaio intitulado ‘O amigo’, Giorgio Agamben mostra que a amizade comporta um estatuto ontológico e político. Ele retoma o tema aristotélico “ó amigos, não há amigos” para recuperar a força da palavra em questão.

Apresentando trechos dos livros oitavo e nono da Ética a Nicômaco de Aristóteles, o autor destaca as equipolências estéticas entre ser e viver, assumindo que o amigo é um outro si, a partir de uma condivisão existencial. Ele explica que na estética de existir persiste uma sensação, particularmente humana, que manifesta a forma de um com-sentir (synaisthanesthai) a existência do amigo.

Escritor Danichi Hausen Mizoguchi / Divulgação: Redes sociais

Como o filósofo propõe, a amizade seria a instância desse com-sentimento, o sentir partilhado da própria existência. Ele explica que nessa lógica há uma partilha vital, que precede a divisão subjetiva, na qual os amigos são com-divididos pelo acontecer da experiência de amizade, porque aquilo que existe para repartir é a própria existência, a própria vida.

Para Agamben, a amizade não está condicionada pela intersubjetividade. Ela independe da relação entre sujeitos. Mais do que uma categoria instituída, de predicado nominal, a amizade conjuga-se no fato da existência. Nessa compreensão, ao com-sentir a existência do amigo, esse existir é sempre substanciado de uma potência política, porque a partilha sem objeto, o com-sentir originário é o que constitui a essência da política.   

Longe de explicações causais, em Eterna Fantasia, o que determina a existência da amizade é a vida que acontece. Ao invés de falar sobre, vivencia-se a amizade. Assim, é através da composição das interações, das ações e dos gestos dos personagens, em contato com o interlocutor, que a amizade parece estar tematizada no romance, como afirmação de luta. Por meio das relações que vão se estabelecendo a cada capítulo, podemos reconhecer o que foge à promiscuidade do poder vigente, a partir dos conflitos internos, que denunciam a indecência política. 

É nesse ritmo de com-sentir partilhado que surge a figura de Sofia. Como ato da palavra viva, ela traz uma profundidade específica, transmitindo a expressão de uma interioridade, até então não pensada por Maria. Sem muito alarde, no tom intimista do texto, a chegada dessa nova personagem transporta a palavra amor em novas seções do romance, podendo imprimir novamente uma alegria ao mundo.

No texto, esse elemento amoroso traz força à linguagem até então inaudita, para se manifestar no que poderia ser uma linguagem muda das coisas, ou o silêncio diante do abismo. Assim, ao situar as diferentes posições dos corpos no espaço comum, através de imagens que modificam o tom dos dias corriqueiros, o autor parece trazer uma convocatória necessária para rever a ordem supostamente estabelecida. 

      Nesses termos, Danichi reinscreve o romance, a cada capítulo, como um objeto movente, convocando a imaginação a alternar o fluxo subjetivo entre uma espécie de tristeza neon e alegria miúda. Com essa lealdade metódica, ele oferece um movimento essencialmente potente aos leitores para pensar nas pequenas e nas grandes políticas, como fazem os velhos e bons amigos da cultura desse país.

Lisiane Leffa é psicanalista. Possui experiência em clínica psicanalítica, com atendimento em consultório particular; e psicanálise e cultura, com projetos como Clínicas do Testemunho (2013/2016), Psicanalistas pela Democracia (2016/2020), Laboratório de Pesquisa em Psicanálise Arte e Política (2017/2021).

Membro associado no Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre. Mestra em Psicanálise Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O Amigo. In:__AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Vinícius Nicastro Honesko (trad.). Chapecó, SC: Argos, 2009.

HOMEM Velho. Caetano Veloso (Vídeo). Mídia eletrônica. Disponível em

https://youtu.be/XBIuA8fWys8?feature=shared . Acesso em 23.08.2025 

MIZOGUCHI, Danichi Hausen. Eterna Fantasia. Porto Alegre: Dublinense, 2025.