Não há genialidade sem sofrimento, ou pelo menos é nisso que acredita Sara Lisa, a personagem central de A (In)Felicidade de Sara Lisa, romance de estreia da autora portuguesa Ana Portocarrero, publicado em Setembro pela editora Penguin. Sara Lisa tem duas certezas. Uma: quer ser uma romancista de renome custe o que custar. Duas: um bom escritor, daqueles verdadeiramente brilhantes, só conseguirá atingir a genialidade se for um “ser amargurado”.
E é aqui que o problema começa. Esta personagem principal com um nome invulgar não é infeliz, nem sequer um pouco. Inicia, então, a procura por um professor da infelicidade, que a ensine a encontrar algo que, por norma, o ser humano tenta afugentar. Perdida nas ruas do Porto numa manhã soalheira, Sara Lisa tropeça em Gael, um homem em situação de sem-abrigo que fala francês, e incumbe-lhe a missão de e a ensinar a ser infeliz.
Este é o primeiro livro de Ana Portocarrero, que se descreve como uma pessoa “muito feliz”, um estado de espírito que deixou verter para as páginas. A história de Sara Lisa e de Gael não estava escrita e guardada numa gaveta há vários anos, mas a ideia já lá estava, e o livro acabou por nascer “num ímpeto, no espaço de uns meses”. “A questão de a arte se alimentar de sofrimento e de um bom escritor ser aquele que se fecha numa cave, a beber e a fumar com os seus fantasmas, num estado extremo de solidão, nunca me convenceu. Nunca usei amarguras para escrever, sempre usei a outra parte de mim, a parte feliz”, refere a autora de 45 anos.
A (In)Felicidade de Sara Lisa tem pano de fundo a cidade do Porto, onde a autora nasceu e cresceu
Manuel Roberto
O “clique final” aconteceu num curso de escrita em que ouviu, mais uma vez, esta ideia de que um escritor só consegue escrever bem num “estado de melancolia”. E Portocarrero pensou: “É agora que vou provar que estás errado”, recorda.
Gael, a personagem com quem Sara Lisa divide o palco, construiu-se de um conjunto de características, mas sobretudo da necessidade de introduzir alguém que fosse “a voz da razão e da experiência”. “Teria de ser uma personagem que, à partida, nos parecesse o exemplo máximo da infelicidade. Desenvolveu-se de uma forma muito idílica, uma pessoa misteriosa, sábia, e que faz com que Sara Lisa consiga reflectir sobre as coisas, independentemente das situações em que ele a coloca”, refere a autora.
Pouco ou nada sabemos do passado de Gael até às páginas finais, mas várias pistas apontam para uma vida rica e cheia de amizades, em que aprendeu a filosofar e a tocar piano. Ao longo da trama, este francês com uma gargalhada inesquecível coloca Sara Lisa em situações que a deveriam ajudar a encontrar a tão desejada desgraça — uma semana a seguir a rotina de um suposto empresário, outra enquanto advogada estagiária numa grande firma, e ainda uma pequena e dolorosa passagem por uma prisão —, mas que, no fim das contas, acabam por lhe ensinar o contrário. Entramos no livro à espera de uma história infeliz (a palavra infelicidade está, literalmente, no título), mas não é isso que encontramos. É um livro leve sobre amizade, (re)encontros e uma vontade fervorosa de ser “algo mais”.
A cidade do Porto como inspiração
A (In)Felicidade de Sara Lisa tem como pano de fundo a cidade do Porto, onde a autora nasceu e cresceu. É na zona da Ribeira, uma das mais antigas da cidade, que Sara Lisa conhece, por um mero acaso e numa rua sombria, Gael, dando início a uma amizade improvável.
Autoria: Ana Portocarrero
Editora: Penguin
184 págs., 14,99€
Já nas livrarias
“Assisti às várias fases da Ribeira. Parecia-me, aos olhos de quem não vivia lá, uma zona escura, sombria, até triste. Agora as ruas são animadas, cheias de gente nova. É um sítio que não só tem muita história como tem muitas histórias dentro de cada família que lá vive. Pelo menos é assim que imagino quando olho para aquelas janelas e para a roupa estendida do lado fora das fachadas, que é uma coisa muito característica. É impossível passar ali e não me sentir inspirada.”
Ana Portocarrero é formada em Biologia, Engenharia Biomédica e Ciências da Comunicação, e trabalha na indústria de implantes para coluna e cabeça. Antes de ser escritora era leitora (porque uma não existe sem a outra). “Leio desde que aprendi para que serviam as letras e como é que se construíam frases. Tinha um avô que escrevia poesia, e desde muito cedo que brincávamos os dois à leitura. Toda a minha família lê muito, faz parte da nossa educação. Lembro-me de ser pequena, com dez anos, e ler A Morgadinha dos Canaviais e Uma Família Inglesa, de Júlio Dinis”, refere.
A entrada no mundo editorial tem sido “uma montanha russa de emoções” que Ana Portocarrero ainda está a subir. “Estou na parte de absorver tudo o que está a acontecer. O livro tem sido muito bem recebido, e para quem escreve e quer publicar é importante que as pessoas nos leiam.” É inevitável que não se pergunte pelo próximo livro, que até já existe. “Os escritores estão sempre a trabalhar num livro. Temos uma série de histórias que têm de sair cá para fora de alguma forma.”