O escritor e jornalista Maurício Melo Júnior, radicado em Brasília, oferece um panorama inédito sobre a capital federal em seu livro “Sete solidões”. A obra propõe uma imersão na cidade ao longo de suas décadas de existência, deslocando o eixo narrativo do poder formal para a densidade das relações privadas e dos conflitos cotidianos de seus habitantes. Melo Júnior, que mora há mais de quarenta anos na capital, descreve o livro como um “pagamento de dívida” literária, buscando entender a complexidade de uma população que reside na monumentalidade e convive com o poder, mas está “bem alheia a este lugar comum”.

A estrutura do livro, composta por sete narrativas, uma para cada década de Brasília, manifesta um controle técnico na forma como o autor mobiliza o tempo como elemento estruturante. O escritor João Almino destaca, na orelha, o domínio das “técnicas narrativas” de Melo Júnior, observando que o tempo surge nas histórias ora como “agente apressado e despido de sensibilidades”, ora como “fonte de quietude” para a reflexão. Em “Sete solidões”, a presença do poder político é indireta; a cidade atua como cenário que afeta as vidas dos personagens, majoritariamente femininos, atravessados por dilemas conjugais e existenciais.

O foco da narrativa recai sobre a contradição de viver dentro de uma estrutura de poder sem, contudo, exercer influência real sobre ela – uma dinâmica que o autor define como a marca da relação dos personagens com o ambiente. A abordagem busca observar Brasília “de dentro”, pelo ponto de vista de quem a habita, evitando os estereótipos políticos ou arquitetônicos. O objetivo é revelar como a experiência íntima e a passagem do tempo moldam o cotidiano da metrópole, abordando questões universais da sociedade humana contemporânea em meio à multiplicidade das vidas retratadas.

Maurício Melo Júnior, natural de Catende (PE), mantém uma trajetória relevante no jornalismo cultural. Desde 2001, apresenta o programa Leituras na TV Senado, além de ter dirigido vinte documentários para a emissora. O autor também publicou os romances “Noites simultâneas”, “Não me empurre para os perdidos” e “Sujeito oculto”, e preside o Instituto Cultural Casa de Autores, atuando ainda como crítico literário no jornal Rascunho. Sua produção ficcional, segundo ele, é estimulada pela própria experiência no jornalismo e pelas conversas com escritores no Leituras.

Leia a seguir a entrevista de Maurício Melo Junior ao Pensar 

Como surge “Sete solidões”?

O livro surgiu como uma espécie de pagamento de dívida. Moro em Brasília há mais de quarenta anos e ela sempre esteve um tanto ausente de minha literatura.  Por isso passei a refletir sobre as peculiaridades da cidade e a escrever estas sete histórias que buscam entender e descrever a relação da gente brasiliense, que mora na monumentalidade e convive com o poder, mas está bem alheia a este lugar comum. 

No livro, Brasília aparece como personagem capaz de afetar, em maior ou menor força, o destino dos personagens, alguns deles diretamente impactados pelas relações – inclusive – íntimas com o poder.  E é descrita de diversas formas: “cidade calada, tolhida, que vive o espírito da contradição”, afirma no último capítulo. O que é mais marcante nessa relação dos personagens com o poder?

A contradição de viver dentro de uma estrutura de poder, mas não exercer poder nenhum. Você pode tomar chope com um ministro ou um senador, mas dificilmente irá influir nas decisões tomadas por estas pessoas, até porque, por trás delas, há um gama de interesses e compromissos que nem sempre deixam essas autoridades plenamente livres para decidir. Pode parecer um lugar comum, mas a verdade é que nem sempre as decisões são efetivamente tomadas em Brasília.   

Ao mostrar o lado íntimo dos moradores de Brasília, “Sete solidões” lembra “Ideias para onde passar o fim do mundo”, “As cinco estações do amor” e outros romances de João Almino, que assina a orelha do seu livro. Concorda com a comparação? Como vê a literatura de Almino? Poderia destacar outras narrativas que se passam na capital?

Sim, João Almino me ensinou a caminhar nestas linhas brasilienses. A literatura dele põe Brasília em definitivo no cenário literário nacional, e a põe descarnada dos estereótipos que tanto recaem sobre ela. João vem de uma tradição que foi inaugurada com Paulo Dantas, em “O Lobo do Planalto”; Garcia de Paiva, em “Luana”; e Almeida Fischer, em romances como “O homem de duas cabeças” e “O rosto perdido”. Outros escritores falaram da cidade com brilhantismo, como Ruy Fabiano, Lima Trindade e Clara Arreguy, na prosa, e Nicolas Behr, Luís Turiba e Anderson Braga Horta, na poesia. Mesmo Marcelo Rubens Paiva, no romance “Ua: Brari”, tem uma passagem por Brasília. Isso mostra o quanto a cidade tem de possibilidades literárias.      

Minas Gerais surge no livro, entre outros momentos, em uma referência ao ciclo da ditadura militar, “O fim do regime virá de Minas Gerais, onde começou”, na origem de uma das personagens com família em Varginha… Como você enxerga a influência e a presença de Minas na capital federal? 

Minas está no DNA de Brasília, não apenas por JK, que a construiu, mas desde que José Bonifácio de Andrade sugeriu que a capital fosse transferida para onde hoje fica o Triângulo Mineiro. Oscar Niemeyer disse várias vezes que Brasília começou no Complexo Cultural da Pampulha. Quando cheguei aqui, há mais de quarenta anos, fui abraçado por uma família mineira, assim aprendia como a discrição e a determinação de Minas foram fundamentais para consolidar a cidade.    

Quais os seus autores mineiros prediletos?

Leio poesia diariamente, então, obviamente, sou leitor assíduo de Carlos Drummond de Andrade e Emílio de Moura, mas tenho um carinho particular com Henriqueta Lisboa. Na prosa, sigo os cronistas Fernando Sabino, que prefiro como romancista, Otto Lara Rezende e Paulo Mendes Campos, e os romancistas Mário Palmério e Cyro dos Anjos, mas sou profundamente grato e encantado pelas prosas míticas de Campos de Carvalho e Murilo Rubião.  

Você apresenta, desde 2001, o programa “Leituras”, na TV Senado. Poderia citar algumas das entrevistas mais marcantes, algo que um de seus entrevistados disse e que você nunca esqueceu?

São muitos, os momentos marcantes, mas sempre destaco quatro deles. Primeiro João Gilberto Noll falando da importância de começar com muita força, com uma frase ou uma cena definitiva, qualquer narrativa. A coincidência de Lygia Fagundes Telles dizendo que sua função era encantar o leitor desde a primeira letra, assertiva repetida, dias depois, pelo cordelista Jota Borges. E o sociólogo Leandro Tocantins falando da força da natureza a domar as vidas. Ou seja, o “Leituras”, para mim, se faz também como uma oficina literária. 

As entrevistas com escritores já estimularam, em algum momento, a sua produção ficcional? E a convivência com o poder?

Sim, muitas vezes. Em uma conversa o poeta Bernardo de Mendonça me alertou para o fato de que eu conhecia todos os dramas da zona canavieira do sul de Pernambuco e do norte de Alagoas, e que precisava contá-los. Eu era repórter de cultura do Correio Braziliense. Tempos depois, já como apresentador do “Leituras”, Carlos Nejar me falou que somente se sentiu poeta quando conseguiu retratar a plenitude do Pampa em seus versos. Isso redespertou minha vontade de ficcionar os canaviais de Pernambuco e Alagoas, e eles estão presentes nos meus livros “Andarilhos”, “Noites Simultâneas” e “Não me Empurre para os Perdidos”. Ou seja, de conversa em conversa fui amadurecendo como ficcionista.    

Você tem dedicado parte de seu tempo a pesquisar a vida e os escritos de Miguel Torga. O que mais o fascina na vida e na obra do escritor português? Consegue enxergar conexões literárias entre Torga e nomes da literatura brasileira? Poderia enviar um de seus poemas favoritos de Torga?

Atualmente trabalho em um romance de formação onde o jovem Adolpho Rocha, que ainda não usava o pseudônimo de Miguel Torga, encontra numa fazenda do interior de Minas o poeta Ricardo Reis. Sim, Miguel Torga morou em Minas entre os treze e os dezoito anos, e essa condição de migrante e de poeta aprendiz é a base de minha narrativa. Já o meu fascínio pelo poeta vem desde que li sua Antologia Poética nos anos 1980. E ali encontrei muitos rastros da literatura brasileira, afinal foram poetas como Olavo Bilac, Castro Alves e Cassimiro de Abreu que deram a Torga os primeiros conceitos de poesia. No poeta maduro Miguel Torga veja a secura precisa de João Cabral de Melo Neto e o lirismo irônico de Manuel Bandeira. Sua poesia e sua prosa, enfim, se fazem com toda carga cultural europeia e com todo lirismo brasileiro, uma junção irresistível, enfim, como demonstra o poema Fábula da Fábula.  

Você faz a coordenação do Prêmio Candango de Literatura, atualmente um dos maiores prêmios literários da língua portuguesa. O que mais chama atenção no conjunto geral de obras inscritas? 

A força narrativa e a diversidade da língua portuguesa. Por ser um prêmio destinado aos autores de língua portuguesa, o prêmio mostra todos os sotaques possíveis. Cada país da lusofonia criou sua própria linguagem de maneira inovadora, mas sem macular o cerne do português. Podemos entender e adorar todas essas literaturas por serem filhas de um mesmo tronco. Daí a importância deste prêmio, descobrir como somos ricos em crenças e linguagens. Lembro Lygia Fagundes Telles que um dia pensou que sua literatura talvez fosse mais intensa e conhecida se escrevesse em inglês, até descobrir que não conseguiria escrever suas verdades senão em português. 

“Fábula da fábula”

Miguel Torga

Era uma vez

Uma fábula famosa,

Alimentícia

E moralizadora,

Que, em verso e prosa,

Toda gente

Inteligente,
Prudente

E sabedora

Repetia

Aos filhos,

Aos netos

E aos bisnetos.

À base duns insetos,

De que não vale a pena fixar o nome,

A fábula garantia

Que quem cantava

Morria

De fome.

E realmente…

Simplesmente,

Enquanto a fábula contava,

Um demônio secreto segredava

Ao ouvido secreto

De cada criatura

Que quem não cantava

Morria de fartura.

“Sete solidões”

De Maurício Melo Júnior.

Caos&Letras

148 páginas

R$ 55

Pode ser adquirido no site da editora ou em livrarias virtuais