“E agora algo completamente diferente.” Valério Romão levou à letra o famoso slogan dos Monty Python, tanto na forma quanto no conteúdo. Além dos vários contos que foi espalhando em coletâneas e revistas literárias, o escritor deu-se principalmente a conhecer aos leitores com a sua trilogia das Paternidades Falhadas — Autismo (2012), O da Joana (2013) e Cair para Dentro (2018) —, conjunto de romances pautados pela crueza da abordagem a dinâmicas familiares e ao inferno que por vezes escondem. Desta vez, não queria nada disso.
“Queria rir-me e fazer rir. É muito bom um gajo reinventar-se, é fantástico”, afirma o escritor de 51 anos em entrevista ao Observador. Mais Uma Desilusão, o livro de poesia que lançou no final de 2024, já prenunciava a mudança no seu estilo torrencial e verrinoso quanto à condição portuguesa. Com O Desfufador, essa mutação concretiza-se em pleno, resultando num romance que descreve como “uma espécie de fogo de artifício disparado em velocidade quatro vezes mais rápido”.
Primeiro de dois volumes — este tem como subtítulo O Contágio —, trata-se de uma sátira com a premissa tresloucada do que aconteceria no mundo se, subitamente, se desse um apagão a nível planetário em que, ao mesmo tempo, todas as mulheres no mundo tivessem um orgasmo e, como consequência, começassem progressivamente a tornar-se homossexuais. As suas personagens não são menos bizarras, de um homem anão despedido do Zoomarine por acidentalmente expor a sua genitália durante uma atuação com um golfinho rufia até uma douta personalidade cujo pendor conspiratório explica-se em parte por ter conseguido sobreviver na infância às macumbas da irmã que queria ser filha única. Justifica-se então a referência ao famoso grupo de comédia britânico no início do texto: estamos em território do nonsense.
Ao escrevê-lo, Romão tinha assim dois objetivos: conceber “um livro completamente diferente de tudo o que tivesse escrito até agora” e, na esteira de autores como Alface e Dinis Machado, demonstrar que a literatura portuguesa não precisa de ser soturna ou, como descreve, “uma miséria cáustica suburbana, um bairro onde as pessoas só não enlouquecem porque a vida tem de continuar”.
Admitindo sem pejo que o título deste livro e a sua premissa pretendem desde logo “causar algum choque” e que o romance “fosse ofensivo para toda a gente”, Romão quis todavia evitar que esse embate se esgotasse em si mesmo. É isso que justifica o tempo que demorou a escrevê-lo: de forma impiedosa, aborda todo o tipo de temáticas espinhosas com humor cáustico. Sem surpresas, essa faceta traduz-se de igual forma para esta conversa, tida junto ao Terminal de Cruzeiros de Lisboa — uma localização escolhida precisamente pelo impacto que o fenómeno turístico tem, não só na capital como nesta narrativa.
▲ A capa de “O Desfufador — Volume 1: Contágio”, de Valério Romão (Tinta da China)
Tinta da China
Este romance começa ao seguir Alex, personagem que em criança teve o crescimento interrompido devido a um pontapé no traseiro desferido por João César Monteiro. Só com este arranque tragicómico, percebemos que este é um romance bastante distinto dos seus anteriores. Como surgiu esta história?
Isto é relativamente fácil de explicar, mas ninguém vai acreditar em mim. Começou na pandemia, mas eu já tinha tido esta ideia algures em 2017 ou 2018 em mais uma noite de insónias, quando uma pessoa se mete na internet e de repente vai de filão em filão, de site em site. Dei por mim num artigo sobre a epidemia de dança em Estrasburgo de 1518. Acabei por mandar vir alguns livros sobre o tema. De facto, é uma das epidemias de dança que ocorreu naquela zona do Reno, a última e a mais mortífera, porque morreram pelo menos dezenas de pessoas de exaustão em agosto a dançar. Isto é uma história inacreditável; para um bom romancista ou para um bom ficcionista, a realidade está sempre a bater-nos aos pontos. “E se levasse a realidade um bocadinho ainda além da dança? E se fosse uma epidemia de lésbicas?” Mesmo não tendo começado a escrever o livro, a ideia foi ganhando raízes. Depois, apareceu-me este anão, também como uma homenagem ao Alex, o anão do Cá Vai Lisboa, do Alface. Portanto, é uma espécie de fogo de artifício disparado em velocidade quatro vezes mais rápido, porque estão sempre a acontecer coisas. E era precisamente isso que eu queria, um livro completamente diferente de tudo o que tivesse escrito até agora — fora dos hospitais, fora da análise minuciosa das relações familiares ou das relações humanas em geral. Queria rir-me e fazer rir. É muito bom um gajo reinventar-se, é fantástico.
A propósito desse afastamento, a trilogia das Paternidades Falhadas se calhar pinta-se a tons mais soturnos, mais sépia; este livro, pelo contrário, parece ser uma explosão de cor em termos literários. É justa esta comparação?
Sim, mas é propositado. Acho que a literatura portuguesa — a literatura em geral, mas a portuguesa em particular, por causa do nosso pendor faduncho — é muito autocentrada, muito dramática. Toda a gente se leva muito a sério e está a fazer uma coisa com muito sofrimento. Não me estava a apetecer isso, porque também temos outro lado. Quem conhecesse os portugueses só pela literatura — mesmo pelos nossos grandes exemplos, como António Lobo Antunes —, achava que isto era uma miséria cáustica suburbana, um bairro onde as pessoas só não enlouquecem porque a vida tem de continuar.
Um povo dado ao solipsismo, no fundo?
Sim, muito pesado… E até se percebe, não é? Vivemos 50 anos de ditadura e — embora haja muitas pessoas, sobretudo as que não passaram por isso, que neste momento querem voltar a esses tempos — acho que isso ainda não foi completamente digerido.
Quanto à “epidemia de lésbicas”, porquê essa premissa e como é que se constrói a partir daí?
Andei à volta do tema durante bastante tempo e a ideia era pegar numa coisa que de facto não é infetocontagiosa, mas que tivesse um efeito psicológico. Por exemplo, num avião, se uma pessoa começar a vomitar e disser que a comida está envenenada, começa tudo a vomitar também. Ou seja, não há aqui um agente patogénico, um fungo, uma cadeia de transmissão visível, mas há um poder de sugestão — como há nos cultos, por exemplo — em que as pessoas fazem coisas que, por natureza, não estariam dispostas a fazer ou que não imaginariam conseguir fazer. A minha ideia era pegar no exemplo de uma coisa “escandalosa”, uma epidemia de lésbicas, algo inverosímil, mas com contágio, com uma propagação; como é que se poderia tentar explicar o assunto, que tipo de especialistas é que convocaríamos para uma epidemia de lésbicas; e que efeito é que isso teria nos homens. Porque, de facto, não ia acabar o mundo por (só) haver lésbicas, porque se as pessoas quisessem procriar haveria inseminação artificial, havia todo o tipo de recursos para a espécie continuar — se quisesse continuar. Mas isso teria um efeito nos homens heterossexuais, que têm a sua autoestima indexada ao olhar feminino, Toda a gente se sente bem em saber-se desejado, ou pelo menos visto.
Não ia acabar o mundo, mas ia acabar com uma conceção de mundo, no fundo?
Sim. E depois, partimos para o terceiro aspeto, que é “como é que a gente resolve isto”. E entra aí O Desfufador.