O jeito sensacionalista de iniciar esta coluna seria dizer que pesquisadores encontraram um primo do vírus Ebola em morcegos do município de Jundiaí, perto da Grande São Paulo. Soltar essa informação sem mais nem menos, porém, seria péssimo tanto para nós, mamíferos bípedes, quanto para os mamíferos de asas, a começar pelo fato de que o tal parentesco com o Ebola é, na verdade, bem distante. Portanto, respire fundo, deixe de lado qualquer impulso medroso e tentemos entender o que o dado significa no contexto de um mundo em transformação acelerada.
No fundo, é sobre a nossa capacidade para lidar com essas mudanças tão rápidas que versa o estudo a que me referi acima. Coordenado por Juliana Amorim Conselheiro, do Laboratório de Zoonoses e Doenças Transmitidas por Vetores da capital paulista, numa parceria entre o Instituto Todos pela Saúde, a Prefeitura de São Paulo e a Organização Pan-Americana da Saúde, o trabalho analisou morcegos coletados no território paulista em busca de vírus com potencial de transbordamento. Ou seja, vírus que, em tese, poderiam saltar de uma espécie para outra e se tornar um problema para a saúde de seres humanos e animais domésticos.
A pesquisa, cujo preprint (versão preliminar) está disponível no depositório online bioRxiv, aproveitou-se do fato de que já há um sistema de vigilância em atividade para mapear a presença do vírus da raiva nos morcegos urbanos. Recomenda-se, por exemplo, que quem encontrar um morcego morto perto de casa leve o pobre bicho para a área de controle de zoonoses de sua cidade. Só o órgão municipal paulistano recebe uns 3.000 morcegos nesse sistema de vigilância passiva.
A intenção dos pesquisadores foi justamente aproveitar essa prática já instalada para mapear a diversidade viral presente nos morcegos urbanos do estado de São Paulo. Não é pouca coisa: calcula-se que ao menos 84 espécies do grupo no Brasil tenham se adaptado a ambientes urbanos, e é comum encontrar morcegos de três famílias diferentes voando pelos céus noturnos da capital.
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A partir de mais de 2.400 morcegos, vindos de 14 municípios (além das amostras paulistanas, havia animais de Campinas, Sorocaba, São José dos Campos e São José do Rio Preto, além de Jundiaí), o grupo empregou uma abordagem metagenômica. Ou seja, grosso modo, em vez de procurar material genético de um ou mais vírus específicos, fez a “leitura” de tudo o que havia nas amostras do pulmão e do intestino dos animais e buscou comparar os fragmentos de genes encontrados com bibliotecas de vírus já conhecidos.
Foi assim que veio à tona o que parece ser a primeira identificação de um vírus –ainda não descrito– da família Filoviridae, a do Ebola, em morcegos do continente americano. Como já destaquei, os fragmentos de material genético indicam que se trata de um parente bem distante do vírus africano. A equipe identificou ainda um tipo de coronavírus (também bem distante do causador da Covid-19) e outros vírus.
Conhecer essa diversidade é importante porque quase todas as novas doenças humanas das últimas décadas vieram de espécies selvagens. Além disso, estamos presenciando uma convivência cada vez mais próxima de morcegos e outros animais com a população urbana. Entender as possíveis conexões virais entre eles e nós é essencial para que surpresas desagradáveis como a Covid-19 sejam barradas muito antes de virarem desastres. Nessa tarefa, aliás, os morcegos devem ser vistos como aliados, e não inimigos.
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