Segundo o mais recente relatório do Conselho Europeu, os lisboetas destinam 116% do salário à renda da casa. Cento e dezasseis por cento. O que quer dizer que, para pagar uma casa em Lisboa, é preciso ganhar 16% mais do que aquilo que se ganha. É um número que desafia a matemática, a lógica e o conceito de sobrevivência. Lisboa é hoje a cidade mais cara da Europa face aos rendimentos dos habitantes.
Hoje, viver em Lisboa é quase um hobby para milionários. Ou um castigo para os que ainda acreditam que “a cultura compensa”. Quem quer ter uma casa precisa de arranjar duas coisas: um bom fiador e uma tolerância emocional acima da média. Porque ver o salário desaparecer totalmente todos os meses quando se paga a renda não é para qualquer um.
Na prática, um casal só consegue viver junto porque um dos dois abdica do direito básico a comer. Ou então endividam-se brutalmente apenas para poder existir. Os solteiros têm duas opções: ou vão morar para a rua (que, convenhamos, tem uma vista ótima para o Tejo), ou metem-se em relações poliamorosas. Não por amor livre, mas por pura logística. Três salários são o novo ideal romântico.
Se a coisa correr mal e o poliamor falhar, há sempre o co-living, esse conceito brilhante inventado para transformar o desespero em tendência. Pagar 800 euros por um quarto minúsculo com uma janela que dá para o poço de ventilação, partilhar a retrete com quatro desconhecidos e chamar a isso “estilo de vida”. O mercado livre é mesmo criativo.
Ter um património líquido milionário, em Portugal, é simplesmente não ter dívidas e possuir um T2 no Intendente comprado há vinte anos por um valor que hoje mal chega para um jantar no Chiado, financiado a 100% por um banco que agora ostenta lucros extraordinários. Estas pessoas são a nova aristocracia lisboeta. Não têm iate, nem Ferrari, mas têm casa própria. Um luxo obsceno em 2025.
O mais assustador é o grau de normalização disto tudo. Pagamos 900 euros por um T0 e achamos “barato”. Aceitamos viver em casas sem isolamento, com infiltrações e contratos de seis meses, como se fosse natural. Fingimos que está tudo bem enquanto partilhamos cozinha com seis pessoas e rezamos para que ninguém coma a nossa lasanha do Lidl.
E depois ainda há quem diga que “é o mercado a funcionar”. Como se o mercado fosse uma entidade divina, imune à crítica, que decide quem pode ou não viver num raio de 50 quilómetros da capital. O mercado não funciona, o mercado explora. E nós continuamos a agradecer por nos deixarem existir entre o sofá e a tábua de engomar.
Em praticamente toda a União Europeia, a habitação deixou de ser um direito e passou a ser uma commodity, empilhada nas prateleiras de um supermercado neoliberal onde o preço é definido pela ganância do momento. As casas já não são lugares para viver, são ativos financeiros, fichas de um jogo especulativo que corre em piloto automático enquanto a vida real fica do lado de fora da porta.
Mas casas são para ser habitadas, ponto final. Não podem ser tratadas como ações em bolsa nem reféns de fundos imobiliários com sede nas ilhas do costume. A nossa realidade material ultrapassou todos os limites: estamos a assistir, em tempo real, à privatização da vida.
Entretanto, em Bruxelas, António Costa anunciou que o Conselho Europeu vai discutir o problema. Há algo de comovente em ver líderes europeus a falar de habitação quando nunca sentiram este problema. A solução, diz ele, é “dar mais margem de manobra aos países”. Traduzindo: boa sorte com isso, Malta.
E assim seguimos. Lisboa continua linda, mas só para quem a vê de fora. Cá dentro, é uma distopia fofinha, com azulejos e tuk-tuks. Um sítio onde o amor é, acima de tudo, uma estratégia de sobrevivência e a expressão “casa de sonho” significa apenas “tem janelas”.
Portugal não é só Lisboa, mas Lisboa também não está nada bem.