Quando o primeiro aterrou, já todos sabíamos o que ia acontecer. E porém, antes disso, há várias definições de “nomadismo digital”. Arriscaria dizer que todas confluem num ponto: o do trabalho remoto, isto é, nómada digital é alguém que trabalha remotamente. O que, desde logo, é divertido, pelas limitações que comporta. Posso ser um nómada digital vivendo no Porto e trabalhando para um projecto ou organização baseado em Lisboa? Ou só se aplica em contextos internacionais? Nomadismo, historicamente, implica migrar de um local para outro ciclicamente. Também é verdade neste caso? Se me mudar de Londres para Lisboa uma vez e ficar na cidade, sou um nómada digital? So many options, so little time.

Quando o primeiro aterrou, já todos sabíamos o que ia acontecer porque nos conhecemos e sabemos todos que a motivação é autocentrada. O que é normal vejamos. Os não-nómadas-digitais, emigrantes ao longo das décadas (portugueses ou de qualquer nacionalidade), e mesmo sem benefícios fiscais obscenos, também mudaram de geografia por motivos pessoais.

Para fugir à pobreza (de espírito, alimentar, habitacional ou outras), para encontrar um lugar seguro, para ganhar espaço próprio de liberdade, para se sentirem realizados. Pensaram, e bem, em si e nos seus, que vem daquele lugar humano de querer ser mais feliz ou estar melhor ou viver de forma diferente. Neste caso, nesta Lisboa e neste Portugal, a borla fiscal deu uma ajuda inestimável. A humanidade por estes dias não é um lugar bonito e junta-se a essa maravilha de desigualdade: um lifestyle de latte na mão.

Aqui nunca me quis “integrar”. Quero, mais que tudo, ser cidadão. Enquanto a integração aprofunda lógicas grupais do “nós” e “eles” o que nos pode interessar é a ideia de cidadania.





Alex Holder mudou-se de Londres para Lisboa há cinco anos, com os olhos no sol, praia, nos cafés fotogénicos. Escreve agora sobre isso no The Guardian, admitindo a motivação fiscal, percebendo que está numa bolha de privilégio e questionando se está no momento de abandonar. Numa leve anatomia do texto, percebemos que olha em volta, que sabe quem está e porquê, que habita a mesma bolha de milhares de outros, que questiona a integração ou a falta dela, o “give back”, mesmo tendo aberto uma livraria ou percebendo que tudo o que está a acontecer se calhar não é particularmente feliz para todos.

Também põe em causa se o valor aportado chega “às comunidades locais”, observa a “ira compreensível” perante a “disneyficação” crescente, e afirma que “tudo parece superficial”. Acaba na “falta de integração”. “A verdade é, não estou suficientemente integrada para retribuir da mesma forma com que usufruo”, diz-nos.

Saltámos, muitos, de alegria. Partilhamos o texto nos espaços digitais, com uma legenda velada que grita “olha, uma nómada digital com consciência em Lisboa, uma pessoa estrangeira que admite e vê o que também nós vemos, que põe o dedo na ferida! Que refrescante!”. A emoção, meu Deus! Finalmente!

E depois, espera aí, então mas… Os factos que Alex descreve não são surpresa para ninguém e também não tinham de ser. O processo de gentrificação da cidade começou há muito, alimentado por decisões erradas, questões sistémicas e desinteresse por uma ideia de cidade.

Mas o que aparentemente parece ser uma reflexão honesta e aberta é também um sintoma. O texto de Alex acredita na narrativa dos “nós” e “eles”, como se a “integração” fosse um Graal por encontrar. Não é.

“Integração”, diz o Priberam, é a “incorporação de um indivíduo ou grupo externo numa comunidade, num meio”. Uma espécie de proposta de modelo societal em que alguém pode ou deve incorporar-se em algo maior, ao qual é externo ou estranho (lá se foi a diversidade). Assume-se, de forma natural, que estar integrado implica pagar impostos localmente e falar a língua “nacional”. Alex faz ainda um favor aos sistemas economicistas em pôr a nu motivações fiscais, e sublinha as bolhas de privilégio sem as questionar verdadeiramente. Para introduzir o exemplo da pessoa que também está em Lisboa por razões políticas, Alex cita: “Vim em Maio de 2021 e estava ligada à comunidade de expatriados aqui”, como se o percurso natural fosse chegar e ficar na bolha. E termina com “o sentimento que o meu tempo aqui pode estar a acabar, que talvez seja tempo para seguir e deixar espaço para outros”.

Quando o primeiro aterrou, já todos sabíamos que talvez esse primeiro, depois, percebesse que estar é diferente de viver, e preferisse outro sol e outras praias depois. Chama-se “extrativismo”. Fofinho, talvez neste caso, intelectualmente honesto, mas ainda assim extrativismo.

Há dois anos, mudei-me para o Reino Unido. A pergunta que mais ouvi neste período foi “como assim, porque mudaste de Lisboa para Liverpool?!”. Sol, praia, velhinhas à janela e cafés nas esquinas habitam os sonhos dos ingleses que, no Norte, se queixam ainda mais, faça chuva ou sol.

Com jeitinho também sou um “nómada digital”. Trabalho também para uma organização em Portugal, remotamente. Ganhando um salário português (ah, a ironia). Fugi de Lisboa porque não era seguro viver na Disney: implicava assistir à destruição cultural da cidade e isso tem impacto na saúde mental de qualquer um.

Vou a Lisboa a cada três meses e amigos e família parecem arrasados pelo que está a acontecer, a cada trimestre mais perto da fuga. Em Liverpool nunca procurei portugueses para entrar numa bolha, mas conheço a Glen, velhinha galesa da porta ao lado que arranca ervas do jardim cada vez que o tempo dá uma aberta e guarda o carro na garagem antes de nevar. Com a Holly, que gere um cineclube queer numa lavandaria comunitária em Anfield, partilho informação e oiço-a. Criei uma empresa de interesse comunitário para fazer projectos com jovens na vila onde vivo e começar a mostrar filmes no teatro local, porque não há cinema em todo o concelho.

Vou cortar o cabelo ao Tom, que está no início de carreira como barbeiro, e mencionei isso ao Paul, que tem 50 anos a gerir barbas e cabelos do outro lado da cidade e pode ajudar. Passo pela loja do Mark para trocar discos e conversa, antes de parar na loja indiana mais antiga da cidade. Uma vez por mês, encontro os gémeos batateiros, que me contam que a espécie que cultivam veio da Irlanda e já ganhou prémios por ser rara. Aos sábados junto-me aos velhotes do clube de fotografia para uma chávena de chá, imagens em cima da mesa e ouvir como lidam com a mudança. Já dei formação gratuitamente a outros grupos e fiz voluntariado entrevistando uma refugiada egípcia para um projecto de história oral. Inscrevi-me num comité para ajudar a abrir um cinema abandonado noutra zona da cidade e registar as reuniões com os moradores do bairro.

Tentei fazer tudo isto em Lisboa durante anos, até ficar tão amargo com tudo que nem com adoçante. Aqui nunca me quis “integrar”. Quero, mais que tudo, ser cidadão. Enquanto a integração aprofunda lógicas grupais do “nós” e “eles” (que agora servem sobretudo para alimentar narrativas populistas político-partidárias), o que nos pode interessar é a ideia de cidadania. Ser cidadão implica trabalhar activamente na defesa de direitos e deveres comuns.

São cidadãos milhares de pessoas estrangeiras em Portugal, de todas as nacionalidades e proveniências, que verdadeiramente querem viver a sua vida em comunidade, ligar-se a outros e à cidade e contribuir com o que são para construir algo melhor. Terá Alex tido a motivação de ser cidadã (em Lisboa ou em Londres)? Com ou sem borla fiscal e sol e praia e expatriados, terá querido viver a cidade e as pessoas em vez de estar de passagem? Será que a desconexão com a vida quotidiana não é uma forma fácil de ficar na bolha?

Nómadas digitais ou sedentários analógicos, estrangeiros ou nacionais, quero é cidadãos.