Há tempos, numa entrevista, o cineasta Pedro Costa dizia gostar da ideia de que “vamos envelhecendo filmando, como se vai envelhecendo pintando”, para depois acrescentar que tinha “um grande amigo, um dos maiores artistas portugueses, o pintor João Queiroz”, que estava muito mais avançado do que ele. “Basta olhar para as pinturas dele. É um trabalho completo, inteiro, de procura.”

Falar da pintura de João Queiroz, que morreu nesta semana antes de completar 70 anos, como “estando mais avançada”, designadamente por relação ao cinema assombroso de Pedro Costa, pode parecer um contrassenso. Desde logo porque a obra de Queiroz se dedicou ao que, por facilitismo, podemos classificar como formatos do passado que foram perdendo importância — o desenho e a pintura, circunscritos aos limites das folhas de papel e da tela e construídos através de técnicas e instrumentos também eles insensíveis ao tempo (em particular, o carvão e a encáustica). E, acima de tudo, porque tematicamente a sua pintura assentou obsessivamente no retrato de paisagens, um género que na ressaca do naturalismo caiu num certo desuso.

Mas, na verdade, Pedro Costa está certo. Num momento em que há uma propensão para a arte promover uma nova ortodoxia, assente num questionamento superficial dos temas do momento, a pintura de Queiroz dedicada às paisagens demarcou-se, expondo paradoxalmente uma visão mais profunda, menos preocupada em reproduzir, mesmo que transformando, a realidade prévia e mais interessada em criar imagens.

Numa longa lição no CIAC – Centro de Investigação em Arte e Comunicação, que vale bem a pena ser vista (está disponível no YouTube), Queiroz a certo momento fala da “invenção do ver”, reconhecendo que o que lhe interessava enquanto artista era, no essencial, incitar uma determinada maneira de olhar, em lugar de modificar artisticamente o que já existe.

Esta abordagem não mimética da natureza, construída a partir de paisagens imaginadas, tinha implicações vastas, indissociáveis certamente da formação de base de Queiroz, que era licenciado em filosofia. A busca da “substância da paisagem” — para utilizar o título que Bernardo Pinto de Almeida deu ao livro dedicado ao pintor, lançado na semana passada — correspondia em Queiroz a um impulso total, no qual, enquanto implicava o seu próprio corpo na gestualidade de pintar, buscava uma invenção da natureza, procurando uma paisagem que não era a representação pictórica de um lugar específico, mas um “jogo do olhar”.

Não se pense, contudo, que a pintura de Queiroz correspondia a uma reação ao movimento de politização identitária da arte contemporânea. Mesmo que nos seus quadros fosse possível vislumbrar um certo regresso aos ideais de beleza, emoção e mistério, a sua arte distanciava-se da estética romântica que procurava a expressão sublime da vida interior da natureza, captando a alma da paisagem — como sugerido por Carus. Na verdade, as paisagens de Queiroz não funcionam como um estímulo à contemplação, mas, na sua paleta improvável de cores, tratam-se antes de uma afirmação de que é possível “entrar, sair, saltar” de um determinado espaço. No fundo, a sua pintura abre as portas para uma imaginação infinita, transformando a forma como nos vemos e ensaiando uma possibilidade de felicidade. E também nisso estava “mais avançado”.

Que o seu desaparecimento prematuro pelo menos ajude a que, finalmente, um dos maiores pintores portugueses das últimas décadas se torne mais conhecido.