Pelo segundo dia consecutivo estão a decorrer confrontos em várias zonas da fronteira entre a Tailândia e o Camboja, o que já levou 138 mil tailandeses a fugirem de suas casas em quatro regiões fronteiriças. De acordo com as autoridades de Banguecoque, que alertam que a situação poderá evoluir para uma guerra, já morreram 15 pessoas, das quais 14 eram civis, desde o recrudescimento das hostilidades, na quinta-feira, o que constitui já a crise militar entre os dois países mais grave desde 2011.
A Tailândia impôs mesmo a lei marcial em oito regiões de duas províncias fronteiriças, de acordo com a Al Jazeera, segundo a qual também foi decretado o encerramento de seis áreas naturais protegidas, incluindo quatro que são consideradas santuários para a vida selvagem.
Para esta sexta-feira à tarde (início da noite em Lisboa) está marcada uma reunião do Conselho de Segurança da ONU. Dirigentes de países como a Malásia, a China e os Estados Unidos já se ofereceram para mediar o conflito, que começa a assumir proporções que preocupam as autoridades do Sudeste Asiático, ao envolver meios pesados de combate, como aviões caça, peças de artilharia, tanques, drones e tropa de infantaria.
“Se a situação se agravar, pode tornar-se uma guerra”, avisou o primeiro-ministro interino da Tailândia, Phumtham Wechayachai, acusando o Camboja de “agressão” e argumentando que até agora a Tailândia “apenas protegeu o seu território e a soberania da nação”. Os dois países acusam-se mutuamente de terem iniciado a actual crise.
O Camboja e a Tailândia discordam há mais de um século sobre o traçado da fronteira, de mais de 800 quilómetros, definida em grande parte por acordos celebrados durante a ocupação francesa da chamada Indochina, entre final do século XIX e meados do século XX. Ambos os países têm denunciado desde Fevereiro incursões em zonas disputadas, nomeadamente em redor de vestígios arqueológicos de templos khmer, o que resultou na morte de um soldado cambojano em Maio e esteve na origem da queda da primeira-ministra tailandesa, Paetongtarn Shinawatra, em Junho. A governante foi apanhada a falar ao telefone com um antigo primeiro-ministro cambojano, Hun Sen, expondo divergências com as Forças Armadas do seu país.
Mais recentemente, na quarta-feira, um soldado tailandês perdeu uma perna ao pisar uma mina terrestre em território fronteiriço e Banguecoque acusa Phnom Penh de ter instalado minas no seu território, o que configura uma violação à Convenção de Otava sobre minas terrestres.
Desde então têm ocorrido ataques aéreos e de artilharia de parte a parte em pelo menos 12 locais distintos da fronteira. Esta sexta-feira de manhã, jornalistas da AFP ouviram tiros na cidade cambojana de Samraong, a 20 quilómetros da fronteira, e testemunharam a fuga de algumas famílias. Também observaram soldados a correrem para lança-foguetes e a partirem em direcção à fronteira.
Oficialmente, o Camboja ainda não fez qualquer balanço de vítimas nem de deslocados. O primeiro-ministro do país, Hun Manet, disse esta sexta-feira que apoiava a proposta avançada pelo homólogo malaio de promover um cessar-fogo. O governante da Malásia, Anwar Ibrahim, que detém igualmente a presidência rotativa da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), falou com os líderes tailandês e cambojano ainda na quinta-feira, oferecendo-se para mediar uma negociação de cessar-fogo.
A Tailândia, no entanto, rejeitou a proposta. “Acho que ainda não precisamos de mediação de um país terceiro”, disse um porta-voz dos Negócios Estrangeiros de Banguecoque, Nikorndej Balankura, à Reuters. “Mantemos a nossa opinião de que o mecanismo bilateral é a melhor saída”.
Da China, que tem uma influência e interesses económicos cada vez maiores na região, chegou pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros a garantia de que Pequim está preparada para desempenhar um papel construtivo e imparcial para alcançar um cessar-fogo. “A raiz deste problema está nas consequências deixadas pelos colonialistas ocidentais no passado e agora precisa de ser encarada e tratada com calma e correctamente”, disse ainda Wang Yi.
Em 2011, confrontos em torno do templo Preah Vihear, classificado como património mundial pela UNESCO e reivindicado por ambos os países, causaram pelo menos 28 mortos e dezenas de milhares de deslocados. O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), principal órgão jurisdicional da ONU, já por duas vezes atribuiu ao Camboja a zona contestada junto a esse templo, em 1962 e 2013. com Lusa