Há um novo negócio para a indústria automóvel europeia que, do ponto de vista da indústria dos componentes, é de transição ainda mais simples. A AFIA quer os empresários portugueses a pensarem no assunto. Enquanto esperam que o Governo faça o seu papel no apoio, nomeadamente fiscal, aos investimentos necessários.
O setor dos componentes automóveis agrega cerca de 360 empresas, que faturam 14.4 mil milhões de euros – que asseguram perto de 63 mil postos de trabalho – e que tem um peso nas exportações totais de mais de 15%. No início de novembro (entre 4 e 6) voltará a realizar a Automotive Industry Week, na sua 12ª edição, sob o tema ‘Thinking Beyond the Transition’, E o que está para lá da transição pode bem ser a indústria de defesa, para onde querem convergir uma série cada vez mais vasta de outras indústrias. Por maioria de razão – uma peça de um automóvel há-de servir para equipar um tanque de guerra – a indústria dos componentes está na linha da frente da transição. E a entidade organizadora do encontro, a Associação dos Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA), colocou a questão no centro dos três dias de debate.
Num contexto em que as tarifas do Donald Trump implicam uma diminuição (que ainda não está contabilizada) dos volumes de negócio e das exportações, é preciso encontrar alternativas. Em entrevista, José Couto, presidente da AFIA, fala do assunto, mas também do que espera da atuação do Governo: incentivos fiscais a fusões e aquisições e ao investimento dos lucros nas próprias empresas seriam muito bem-vindos,
O encontro reunirá líderes da indústria automóvel, compradores internacionais, decisores políticos e especialistas para discutir os desafios e oportunidades do setor automóvel num momento de transformação global.
Há mais de um mês que as tarifas dos Estados Unidos estão no ativo e o setor já consegue ter alguma perceção daquilo que são estes novos tempos do comércio internacional.
Sim, neste momento o que temos como certo é que caíram as vendas para os Estados Unidos: houve uma diminuição com alguma relevância, se bem que não tenho os números finais tendo em conta que as estatísticas em Portugal se fazerem com um atraso. Mas nas conversas que temos tido com os nossos associados, há de facto uma diminuição das vendas diretas. Mas também sabemos que do ponto de vista indireto há um mau ambiente: temos a Alemanha a cair também nas suas exportações para os Estados Unidos. E como nós exportamos para muitos OEM e tier 1 [fabricantes automóveis e fornecedores de primeira linha] que exportam para os Estados Unidos, a nossa produção também está em queda por essa via. Podemos estar com uma queda das exportações entre os 11% e 12%
Provavelmente, até ao final do ano essa queda irá acentuar-se.
Não sabemos o que é que vai acontecer, uma vez que tem muito a ver também com a reação dos mercados, desde logo do mercado dos Estados Unidos. Aquilo que podemos neste momento ter como certo é que esta diminuição vai continuar até ao final do ano: realisticamente, julgamos que podemos ter uma queda entre os 11% e os 15% no final do ano.
Que medidas é necessário tomar no setor para ultrapassar este problema? Uma das formas é os empresários investirem diretamente nos Estados Unidos e portanto assim ultrapassarem a questão das tarifas. Mas para isso é preciso grande quantidade de capital, que, eventualmente, as empresas portuguesas não estão capazes de convocar.
Esse é o objetivo desde a primeira hora das autoridades norte-americanas: querem captar investimento europeu no seu território. Esse é de facto o objetivo final. Contudo, quero lembrar que uma empresa que resolve investir nos Estados Unidos tem um período significativo, entre dois e três anos, para ter resultados desse investimento. Portanto, não é a solução, provavelmente no curto prazo não passará por aí. Enfim, esperemos que os nossos clientes europeus, se fizerem investimentos nos Estados Unidos, continuem a contar connosco e portanto que possam ser porta-aviões para os investimentos que as empresas portuguesas possam também fazer nos Estados Unidos. É com alguma dificuldade que uma empresa portuguesa de média dimensão, e mesmo de grande dimensão, pode fazer esse trabalho sozinha – tendo uma OEM a estimular o investimento lá e tendo desde logo alguns contratos, isso pode resolver parte do problema. E há também a questão das vendas que são feitas por países à volta, na área de influência dos Estados Unidos, no shopping mobile, que também baixaram a sua atividade e portanto…
Uma hipótese seria diversificar para outros mercados, para a China.
As vendas da China também caíram. E temos algumas dificuldades nesse mercado. Esta narrativa de que temos que encontrar novos mercados não é… não é fácil dizer que vamos diversificar mercados. Para além de que o mercado europeu é aquele que está aqui ao lado. Trabalhar para o mercado chinês supõe custos logísticos altíssimos, enfrentar adversários ou competidores. Tudo isto tem um tempo e um custo que é preciso avaliar, não é uma coisa que se possa fazer com ligeireza.
Outra hipótese é as empresas no seu território, em Portugal, contarem com um contexto que lhes seja mais favorável. Encontrou no Orçamento do Estado 2026 características que permitam às empresas na generalidade contar com mecanismos que lhes permitam percecionar uma vida mais fácil em 2026?
Aquilo que nós enfrentamos é o mesmo que enfrentam as empresas europeias. Nós temos um problema de competitividade, isso é um problema claro que a Europa tem neste momento – que está ligado ao processo de desindustrialização, das alterações daquilo que era a indústria europeia há 10 anos: em 10 anos perdemos relevância neste contexto. A competitividade é um problema, comparativamente com os Estados Unidos: é à volta de 20% mais baixa. E relativamente à China não sabemos exatamente onde é que estamos, porque as empresas são altamente intensivas em mão de obra e outras são altamente intensivas em capital. Ora, a Europa preocupou-se com a situação e o foco é aumentar a competitividade tecnológica, da produtividade e portanto significa que têm que ser feitos investimentos para recuperar algum do tempo que se perdeu. Mas é uma coisa que provavelmente não acontecerá nos próximos anos. O que precisamos é de aumentar a nossa capacidade de acolher novos investimentos, estimular os empresários nacionais a continuarem a investir nas suas empresas de forma a poderem aumentar a sua intensidade tecnológica, a investigação e desenvolvimento, a produtividade, a formação dos seus trabalhadores, a digitalização. E isto são custos significativos. Temos de premiar aqueles que continuam a investir e a criar condições para que o dinheiro possa ficar dentro das empresas, para remunerar os investimentos e isso significa uma política do ponto de vista do IRC. Mas é também preciso que os trabalhadores sintam que os seus esforços valem a pena do ponto de vista da distribuição do rendimento. Outra das dificuldades que as empresas têm hoje na Europa é a sua dimensão: temos de encontrar programas que nos ajudem a juntar empresas, a juntar a capacidade de produção. Aquilo que está no Orçamento, as intenções em alguns aspetos são boas – resta perceber se essas intenções se concretizam em linhas programáticas e capazes de fazer a diferença. Também a questão da logística: temos de chegar aos mercados da Europa Central, que é onde, de facto, está o consumo europeu, porque temos um esforço superior aos nossos concorrentes. É evidente que há outras questões externas; por exemplo, esta questão da regulamentação – a Europa é altamente formatada e conformada que se traduz em dificuldades e barreiras em termos competitivos.
Portanto faltam incentivos fiscais ao aumento da dimensão e ao reinvestimento de lucros. Pergunto-lhe, mais especificamente, se as alterações previstas às Leis do Trabalho vão no sentido de uma flexibilização que é importante para as empresas.
Hoje vivemos um quadro regulatório, do ponto de vista das Leis do Trabalho, que em alguns casos nos determina alguma perda de capacidade e de alguma flexibilidade. Podemos viver com elas, mas devemos analisar os países os nossos concorrentes. Neste momento têm como uma vantagem competitiva, que serve para atrair investimento. Flexibilidade dos horários de trabalho, o processo de remuneração, a responsabilidade social – as empresas têm hoje preocupações nos recursos humanos que muitas vezes estão para lá daquilo que está formatado no quadro das Leis do Trabalho.
Há a formatação de uma ideia segundo a qual a necessidade que a Europa encontrou de investir na defesa determina que há ali um novo nicho de negócio que os empresários portugueses podem tentar encontrar. Na área dos componentes, suponho que há peças que são para automóveis, mas também podem servir para tanques e para aviões de guerra. É uma área para que a AFIA está a olhar?
A AFIA pertence à CLEPA, a Associação Europeia de Fornecedores da Indústria Automóvel, que é uma confederação das associações dos componentes automóveis. E nós há mais de um ano identificámos este mercado como uma boa oportunidade para a indústria. É expectável que a indústria automóvel na Europa continue a cai e essa queda significa que vamos ficar com capacidade de produção disponível. A indústria automóvel na Europa tem quase 13 milhões de trabalhadores e assegura quase 7% do PIB do bloco – que contribui e alavanca, por exemplo, a área de investigação e desenvolvimento. Ora, há aqui uma disponibilidade de meios, de infraestruturas, de conhecimento que está na indústria automóvel, mas que pode migrar para outras áreas, para outros setores de produção. Mesmo para além daquilo que é a indústria da defesa. Na área da defesa, é preciso perceber exatamente quais são os investimentos que é necessário fazer, quais são os investimentos que já se estão a fazer, para responder às exigências deste mercado. É preciso fazer o link entre aquilo que são as necessidades da indústria europeia da defesa e as competências das empresas, nomeadamente dos componentes. Portanto, temos de aprender rapidamente, saber o que é que temos que fazer, se é necessário fazer, acrescentar conhecimento e que investimentos são necessários. E a indústria automóvel está neste momento com esse objetivo, está focada nisso. Aliás, na nossa 12ª semana da indústria em Portugal temos uma área, um workshop que será especificamente para pensarmos e para ajudar os empresários a refletirem sobre isto: o que é que têm de fazer, qual é o esforço que têm de fazer. Temos de lidar com outros países que têm fortíssimos investimento na produção e que têm muitos anos à nossa frente. Portanto, esta questão da indústria da defesa é crucial, é muito importante, é uma oportunidade de negócio para a indústria de componentes e nós gostaríamos que não se perdesse esta oportunidade. E que os empresários nacionais estivessem atentos e fizessem, se quiserem, o esforço necessário para entrar neste segmento.