A vigília performativa O Julgamento Pelicot, que passou por Lisboa no início de Outubro e versa sobre o caso da violação sistemática de Gisèle Pelicot e a sua tramitação judicial histórica em França, foi “censurada” no Festival Internacional de Teatro de Belgrado (BITEF, na sigla original). A palavra é de Milo Rau, um dos autores da obra e considerado “persona non grata” na Sérvia desde a edição anterior do festival — esta, a 59.ª, está em risco e segundo a imprensa local “existe apenas no papel”. Para substituir O Julgamento Pelicot foi sugerida “qualquer coisa”.

O caso agita a comunidade artística sérvia e europeia já desde a semana passada, quando os directores artísticos do BITEF se demitiram após a impossibilidade de programar O Julgamento Pelicot nesta edição do festival. Para o dramaturgo Miloš Lolić e o encenador Borisav Matić, directores artísticos votados vencidos pelo Conselho do BITEF, que avalia a programação do evento, este é um “ano histórico para o BITEF” pelos piores motivos.

Abriu-se um “precedente” depois de “58 anos tempestuosos” de existência do festival, obrigado a cancelar a vinda de um convidado estrangeiro, o suíço Milo Rau, à Sérvia, considerado “indesejado”. Os responsáveis administrativos do BITEF rejeitaram o programa da direcção artística, e os agora ex-directores artísticos do festival opõem-se “firmemente” à posição do Conselho do Festival de que Rau, “ou qualquer outro artista no mundo, possa ser persona non grata” no evento.

Este é um caso em que não é O Julgamento Pelicot que está em causa. Aliás, dizem os ex-directores artísticos na mesma nota, o seu teor ou qualidade não foram sequer discutidos nas reuniões. É a censura de um dos seus autores e “representa o acto final de destruição da liberdade artística de um dos maiores festivais da Europa”, diz o encenador suíço em nota enviada esta segunda-feira através do seu colectivo de instituições artísticas europeias contra as restrições à liberdade artística Resistance Now.


“No geral, é sem dúvida o ataque mais grave à liberdade artística que já experimentei nos meus 20 anos de carreira como artista e curador”, disse Rau.

Já desde o ano passado, o BITEF sofre consequências pela sua relação com Milo Rau, um dos mais respeitados encenadores da actualidade. Viu o seu orçamento encolher para metade, o director artístico de então, Nikita Milivojević, demitiu-se e a intervenção do governo na estrutura do festival aumentou, ao mesmo tempo que pela primeira vez, segundo a imprensa sérvia, em 2025 o Ministério da Cultura não atribuiu verbas ao festival.

Em 2024, Rau fez um discurso na sessão de abertura da 58.ª edição do BITEF em que criticou a exploração de lítio nos solos sérvios para uso na indústria automóvel alemã e causador de danos para milhares de sérvios deslocados. Desde então, escrevem Miloš Lolić e Borisav Matić num comunicado de imprensa datado de dia 23 e citando os media sérvios, o encenador suíço é considerado persona non grata e também por isso “a Secretaria de Cultura da Cidade de Belgrado cortou o orçamento do festival pela metade neste ano”.

“Até há uma semana, a possibilidade de o 59.º BITEF acontecer significava que a equipa de direcção artística assinasse um programa censurado, com uma lacuna enorme no lugar” de O Julgamento Pelicot, que já passou pelo Festival de Avignon como “um marco nas artes teatrais”, nas palavras do diário francês Le Monde. “Ou então preencher essa lacuna com ‘qualquer coisa’, o que foi proposto na reunião do Conselho”, revelam Miloš Lolić e Borisav Matić.

Agora, sem direcção artística nem a peça de Milo Rau e da dramaturga e activista Servane Dècle, o BITEF deste ano “existe apenas no papel”, como resume o jornal sérvio Danas, que detalha esta segunda-feira que a autarquia de Belgrado não aceitou formalmente a demissão dos directores artísticos. Mais, relata que o programa foi a duas reuniões e em ambas a presença de O Julgamento Pelicot foi rejeitada. Parte deste conselho mantém-se, com três dos seus membros entretanto também demissionários.

Tudo isto sucede num país que enfrentou meses de manifestações, sobretudo organizadas pela comunidade estudantil, em protesto contra o que consideram ser a falência do Estado sérvio em parte por estar há demasiados anos nas mãos do Partido Progressista Sérvio (no poder desde 2012) e de Aleksandar Vucic, pressionado a marcar eleições antecipadas e considerado próximo do governo russo.